Introdução
A guapa acrobata do ar gira e volita
sobre o público, lisos cabelos dourados pendidos e longos, rosto luminoso de
sorrisos e gliter. Abaixo dela, a estrondosa salva de aplausos após instantes
de medo e excitação. O aro metálico é seu refúgio, assim como o trapézio é seu
quintal. O espetáculo ilumina a noite preenchendo a desolação com luz e o
silêncio com vida. Ela desce ao picadeiro e faz as reverências e mesuras ao
público. Seus lábios aquecem o vento e sua alegria irradia claridade.
Em seu camarim-treiler, já trocando a
malha por uma roupa comum, Amanda sorri lembrando que faz o que ama,
finalmente. O circo é sua casa e está entranhado em sua alma. Sua mente tenta
isolar esses curtos mas tão imensos lapsos de felicidade da dura realidade que
a espera logo após, quando então o mundo reclama seu direito de ferir e
destruir.
A prostituição compulsória, o abuso e a
exploração perpetrados por sua tutora reclamam agora seu espaço indigno, mais
forçado que consentido, e a menina chora. Chora lembrando os bons tempos em que
a antiga tutora a protegia de tudo e de todos. Uma dádiva retirada de sua
existência havia alguns anos. A partir de então, dor. Por isso Amanda valoriza
esses momentos em que pode ser ela mesma. Contudo, algo está para mudar.
Seu cliente, hoje, é alguém especial.
Quando ele entra na tenda armada para tal fim, ela sorri. Não é alguém comum,
embora ela não saiba nada sobre ele. Tudo o que ela sabe é que, por alguma
razão que desconhece, confia nele total e irrestritamente. Seu nome é
Siegfried, ou pelo menos foi assim ele se apresentou há alguns meses em uma
cidade próxima, durante uma turnê circense.
Naquela ocasião, ela e um dos palhaços
compravam comida em um pequeno mercado, e foram hostilizados pelo dono e por um
cliente que não gostavam de “ciganos”, o que seria apenas metade do motivo. Ambos
também eram clientes do negócio paralelo da tutora de Amanda, o que os fez
sentirem-se constrangidos por ter que interagir com a moça na rua. Mas Siegfried
estava lá, e os defendeu. Com seu notável sotaque austríaco, se fez ouvir e
impôs seu ponto de vista.
Desde ali, criaram uma espécie de
afinidade inexplicável e implícita. Durante as apresentações do circo, lá
estava ele na plateia. E após, saíam para conversar, quando a tutora de Amanda
não a “emprestava” para seus clientes.
Ficaram íntimos, e ela lhe contou sua
vida, desde quando fora deixada recém nascida num circo onde a dona, uma
senhora europeia, muito bondosa, a criou como sua enquanto vivia. E o que era
obrigada a fazer agora, pela nova tutora, que seria a filha mais velha e
legítima dessa senhora.
Agora, ele sabia de tudo. Mas ela não
sabia quase nada sobre ele, exceto que viera da Europa havia algum tempo.
Siegfried sorri com ternura, e hesita
na entrada.
— Que bom que tu veio! — Diz Amanda
com entusiasmo.
— Vim te trazer um presente! —
Responde.
— O quê? — É a expressão supresa de
quem jamais ganhara um presente. — O que é?!
— É tanto um presente maravilhoso
quanto uma maldição desesperadora. — Revela.
— Seja o que for, eu quero... —
Responde ela, de um jeito emocionado e triste ao mesmo tempo.
— Gostaria de permanecer aqui, em 1972,
para sempre? — Pergunta ele, rindo.
— Credo! Não! — Ela ri também. — Mas
eu quero teu presente... O que é?!
— A eternidade. — Sussurra Siegried.
* * * *