sábado, 5 de fevereiro de 2011

♠♠♠ Encontro Nunca Marcado ♠♠♠

********************************************** “Quando encontramos nossos maiores medos é
**************************************************** que reencontramos a nossa natureza.”
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♠♠♠♠♠ Amada Amanda... Que noite a de ontem! Tu não imagina...
♠♠♠♠♠ Eu nunca imaginaria passar por uma situação sequer parecida!
♠♠♠♠♠ Senta! Vou te contar com detalhes o que aconteceu. Do que estou rindo?! Pergunta ‘por quê’ estou rindo! É por satisfação de estar ‘vivo’ <gesto de “aspas” com os dedos>! Da situação mais absurda na qual eu poderia me envolver, me saí bem, pra contar à posteridade. Não te preocupa! O teu Gabriel tá bem, tá inteiro, tá aqui contigo... Sirva-se de mais ‘vinho’! E saboreia...
♠♠♠♠♠ Escuta esta história, e diz se alguém acreditará!
♠♠♠♠♠ “Eu saí da boate logo que tu chegou ― eram vinte ou vinte e uma horas ― por aí. Lembra que eu falei que precisava encontrar um investidor no subúrbio? Pois bem: lá fui. E levei o Nicodemos. Passei na outra boate e o peguei. Afinal, apesar da minha experiência (e das armas!), não vou facilitar... Não é uma questão de coragem... É uma questão de precaução!
♠♠♠♠♠ “Encontramos o tal investidor, um sujeito difícil e desconfiado. Seu nome é Kirshner, ou assim o entendi. Percebi que é um sujeito centrado, e muito experiente com este tipo de negócio... Apesar de ser judeu (?!) Bom, aquele ali, pelo que percebi, tem o dinheiro por seita. Contudo, duvido que ele deixe a filha freqüentar o seu ‘novo investimento’!
♠♠♠♠♠ “No início, quando chegamos a um ‘Pub’, que tem também um restaurante, num prédio discreto e afastado da avenida, já encontramos o senhor Kirshner à nossa espera, sentado, com um jornal nas mãos, servindo-se de petiscos e de vinho de mesa. A seu lado, um outro senhor, que ele apresentou como seu advogado, o Doutor Maciel. Ambos aparentam ser bem mais velhos do que nós, e isso me pareceu não inspirar muita confiança deles para conosco. Seus olhares de desdém e dúvida faziam-me sentir incomodado.” ― Afinal, gosto de aparentar vinte e um anos, o que tem de mais?!
♠♠♠♠♠ “Após as apresentações, e após uma breve referência ao assunto que nos levou até ali, os cavalheiros fizeram seus pedidos: peixe grelhado e vinho do Porto. Nicodemos e eu pedimos o mesmo. Aí, nos entreolhamos, e cada qual lamentava o fato de eu não poder desfrutar tal agrado... Quando os pratos chegaram, o sofrimento foi maior: a aparência do peixe, sua disposição no prato, seu cheiro, tudo concorria para despertar minha nostalgia. Nicodemos nem ligou, mas eu senti e demonstrei muita saudade, apesar do tempo já passado... Então, para evitar perguntas inconvenientes, dissimulei um pouco, fazendo cortes nos filés e desconversando. Nem foi preciso. Os dois homens, de físico avantajado, estavam tão absortos com o repasto, que sequer olharam para nosso lado da mesa. Foi até fácil, pois Nicodemos chamou o garçom discretamente, e pagou-lhe uma boa gorjeta para que levasse sorrateiramente a minha comida num recipiente até uns moradores de rua (outros membros da família também costumam freqüentar ali, e aquele garçom nunca faz perguntas). Tudo foi feito com uma naturalidade e uma maestria sobrenatural, que os convidados nem repararam. Dois pratos, agora vazios, descansavam sobre a mesa. Os outros dois estavam bem ocupados.
♠♠♠♠♠ “Então, tive um estalo! Vi, a poucos metros de mim, um piano. O ambiente estava sem música, o que não era natural naquele lugar, segundo o advogado, o tal senhor Maciel, que disse ter comido ali três ou quatro vezes ouvindo música ‘ao vivo’. Com discrição, perguntei ao garçom se poderia... Logo, eu estava sentado junto ao instrumento, tocando o ‘Nocturne em Mi maior, opus nove, número dois,’ de Chopin. Quando acabei, os aplausos vieram até do lado de fora... E os nossos novos sócios, que pararam de comer para ouvir, hoje confiam em mim a ponto de me darem suas senhas de banco” ― Se o Príncipe soubesse o que é música de verdade, e do que ela é capaz, ele nunca me acusaria de ‘violar a máscara’; ele reconheceria que minha elegância e meu talento apenas a reforçam.
♠♠♠♠♠ Ah, Amanda! Tu sabe que quando toco, penso em ti... Isso! Sorria, minha linda criança! Assim... Deita aqui. Deixa eu contar o resto, porque até agora, tudo foi dentro do esperado. O que tu ainda não sabe, e que vai te deixar pasmada, vem a seguir...
♠♠♠♠♠ “Conversamos e concordamos os termos do investimento que fariam em uma de minhas casas noturnas...” ― E eu te trouxe um esboço do contrato, para que tu aprove, ou não! ― “e após isto, nos despedimos cordialmente. Os sujeitos eram só sorrisos! Agora, tudo era diferente. Se, no início, me acharam um garoto bobo, um filhinho de papai <riso triunfal>... Após a nossa conversa, e após ouvirem-me tocar, perceberam que sou bem mais que isso. O advogado ainda tentou dar uma de esperto, perguntando com propriedade:
♠♠♠♠♠ “― Aprendeu a tocar com quem? Com Mozart?! ― e sorriu convencido...
♠♠♠♠♠ “― Ele tocou Chopin, Doutor! ― Riu o cliente, discretamente.
♠♠♠♠♠ “‘Chopin... Tive o prazer de conhecê-lo. Mas não o de ser seu aluno’, pensei. E respondi rindo:
♠♠♠♠♠ “― Como o senhor sabe que aprendi com Mozart?! ― E ri mais ainda.”
♠♠♠♠♠ Pensaram que eu estava brincando apenas para tirar o advogado do sufoco. E, de quebra, ainda, eu disse a verdade! Dois alvos, um disparo...
♠♠♠♠♠ Bom, meu amor... Agora vem a parte inacreditável.
♠♠♠♠♠ “Quando saímos do lugar, eu estava prestes a vivenciar algo inimaginável; algo inesperado; algo assustador...
♠♠♠♠♠ “Pedi a Nicodemos que voltasse para a Ma Monique, para ver se tu não precisava de nada. Eu disse-lhe que gostaria de caminhar e aproveitar a noite. Ele, estranhando, retornou pela avenida principal com a ‘Cherokee’, enquanto eu caminhei pela rua à frente do Pub. Há ali umas fábricas abandonadas, uns prédios enormes e silenciosos, e esse não é um bom lugar para passear. Contudo, a noite estava tão agradável... E eu senti algo, uma espécie de chamado, como se alguma coisa me atraísse para aquele local. Caminhei a esmo, observando as nuances da noite enluarada, e o balançar das árvores das calçadas tocadas pelo vento. Entrei por rua estreita, que leva a uma bifurcação. Segui a rua da esquerda, que me levaria para a avenida, mas esta apresentava um caminho estreito entre dois prédios grandes, com três andares cada. Há várias caixas de entulho sobre aquela ruela de paralelepípedos, e bem no meio da rua, o que obrigou-me a passar bem junto às paredes. E ali eu tive uma surpresa...
♠♠♠♠♠ “No meio do caminho, há um vão parecido com um beco, no prédio da esquerda. Passei por ele sem preocupações, mas algo me chamou a atenção, fazendo-me voltar. Ouvi um gemido, um quase lamento, e isto parecia vir de um ser humano. Voltei um pouco, e espiei para dentro do beco. Nada vi. Devagar e com cuidado, fui esgueirando-me sorrateiramente para ver o que havia ali. Nossa! Foi uma surpresa: havia ali um rapaz semi-nu, descalço, preso à parede por fortes grilhões em pesadas correntes. Ele estava preso pelos pulsos e pelos tornozelos. Havia ainda um grilhão no pescoço do sujeito! Fiquei pasmado... Fiquei pensando de que clã, de que família ele seria... Imaginei o crime que ele teria cometido para estar assim... Se teria sido capturado por um caçador de recompensas... Ou se era apenas uma isca!
♠♠♠♠♠ “Logo que me viu, ele gritou insanamente:
♠♠♠♠♠ “― Vá embora! Saia daqui! Se não deseja morrer... Vá!
♠♠♠♠♠ “― Calma, amigo. Eu sei me cuidar. Quem te pôs aí?!
♠♠♠♠♠ “Ao me aproximar mais, ele pareceu haver percebido algo que lhe escapara do senso, quando tentava me alertar. Ele pareceu cheirar ― muito discretamente ― o ar, e então percebeu minha natureza. Eu, por minha vez, pressenti, com cada célula da alma, com o cheiro, com os sons, a encrenca em que estava me metendo. Ele começou, então, a gritar coisas diferentes, mas esperadas:
♠♠♠♠♠ “― Maldito desgraçado! Sai daqui, sanguessuga amaldiçoado! Vocês querem atrair nossos irmãos para drená-los? Acho que não são tão estúpidos a ponto de achar que podem... O quê faz por perto e sem reforços?! Eu estou acorrentado, mas posso te despedaçar! O que fará quando meus irmãos chegarem?
♠♠♠♠♠ “Instintivamente, olhei ao redor. Por enquanto, nada. Aquele rapaz era um pobre filho de Gaia, um ‘licantropo’, um lobisomem. E, pelo que entendi, ele fora posto ali por um membro, por um cainita, para atrair outros lobisomens, talvez numa manobra para destruí-los; ou subjugá-los à vontade de alguém...
♠♠♠♠♠ “Eu nunca odiei estes irmãos” ― Tu bem sabe! ― “Apenas os temo. Não desejo encontrar nenhum, mas aquele ali me agradecerá mais tarde...
♠♠♠♠♠ “Aproximei-me mais, e disse isso:
♠♠♠♠♠ “― Calma, irmão! Eu vou abrir esses grilhões.
♠♠♠♠♠ “― Fica longe de mim, abominação! Tu é idiota por ainda estar aqui... Se ama a tua carcaça, seu cadáver sujo, desaparece!
♠♠♠♠♠ “― Calma, irmão... Nossa! Tem prata... As correntes foram banhadas em prata! Me diz: quem te pôs aqui?!
♠♠♠♠♠ “― E tu não sabe?! Quem mais pode saber?! Teu mestre, teu irmão, teu servo... Vocês são uma coisa só!
♠♠♠♠♠ “― Não vou discutir... Agora, fica parado, pra eu tentar abrir isto...
♠♠♠♠♠ “Então, enquanto eu pensava na melhor maneira de abrir aqueles grilhões, uma lua linda e cheia revelou-se no céu. Até ali estivera encoberta. Mas naquela hora, eu comecei a temer...
♠♠♠♠♠ “Eu não sei se foi o luar, ou a vontade dele... O fato e que o prisioneiro começou a arfar... a gritar... a uivar... E, em menos de dois minutos, seu corpo ganhou proporções gigantescas, de feições animais, com uma fúria fenomenal. Parecia a pintura de uma cena dantesca, saída do próprio inferno criado pelo florentino.
♠♠♠♠♠ “Eu fiquei paralisado, sem reação... A criatura crescia, e fazia um estrondo absurdo com aquelas correntes. Mas o medo, o terror, deram novamente lugar à piedade. À medida que o licantropo aumentava de volume, os grilhões que o prendiam estrangulavam-lhe os pulsos, os tornozelos e o pescoço. Qualquer pessoa fugiria... Qualquer cainita também, embora mais satisfeito. Mas eu não! O pobre lobo uivava, chamando seus irmãos. Mas quem o teria posto ali para atrair os demais? É claro que esse alguém era burro: lobisomens não caem nessas armadilhas ― eles descobrem outro jeito de agir!
♠♠♠♠♠ “Diante de mim, a menos de cinco metros, um gigante metade animal, metade homem, agonizando, soltava sua fúria em golpes inúteis que apenas lhe feriam os membros. Bom, a coluna em que as correntes estavam presas começou a rachar, mas levaria a noite toda... Além do que, o revestimento de prata das correntes e dos grilhões o feriam muito. Percebi o olhar triste do animal voltado para o enorme prédio de concreto e aço. No seu desespero, ele até me deu as costas, esquecendo-se de mim, enquanto tentava se libertar... Sem mais o que fazer, comecei a divagar:
♠♠♠♠♠ “― Eu sei! Este mundo também não é o meu! Eu também não gosto destas cidades. Prefiro mil vezes o campo.
♠♠♠♠♠ “O animal rosnava e babava, e parecia querer me destroçar.
♠♠♠♠♠ “― Fica calmo, amigo... Assim que tu se acalmar, eu vou te libertar. Se alguém aparecer, não deixarei que te façam mal.
♠♠♠♠♠ “A criatura, ainda muito enfurecida, me encarou desafiadora. E eu respondi:
♠♠♠♠♠ “― É! Eu sou um anjo... puro e santo! ― E sorri.
♠♠♠♠♠ “Após uma eternidade, o animal começou a se acalmar. Não sei se foi porque nuvens encobriram a lua (superstição?), ou se foi porque a adrenalina do lobo baixou, o fato é que ele voltou à forma humana, com o que sobrou da bermuda já em farrapos. Então, eu tentei convencê-lo:
♠♠♠♠♠ “― Amigo, eu quero te tirar daí.
♠♠♠♠♠ “― A troco de quê?! De algum serviço?! Da minha alma? Quantos dos meus quer que eu te entregue? ― Falou irônico.
♠♠♠♠♠ “Aproximei-me devagar, e, com o alfinete de um broche de rosa, que uso na manga da camisa como abotoadura, abri o primeiro grilhão. Foi o do pescoço, e este estava bem machucado. Afastei-me um pouco, avaliei a reação do sujeito... e retomei o trabalho, abrindo os demais, começando pelos pés. Ao abrir o último, da mão direita, ouvi ele falar:
♠♠♠♠♠ “― Eu não sei o que tu pretende... mas é bom fugir!
♠♠♠♠♠ “Liberto o prisioneiro, usei minha rapidez sobrenatural para escalar o poste da luminária pública. A oito metros do chão, seguro e confortavelmente sentado, avaliei o comportamento do ex cativo. Eu era como um gato escapando de um cão feroz. Ele sequer viu minhas espadas sob o meu sobretudo, e evitei mostrá-las, para não irritá-lo mais. Logo que escalei o poste e me vi em segurança, ele perguntou:
♠♠♠♠♠ “― Que tipo de jogo vocês estão fazendo?
♠♠♠♠♠ “― Não fique aqui para saber! Vá! ― Respondi.
♠♠♠♠♠ “― Boa sorte com o novo inimigo... ― Disse ele, já saindo dali. ― Tu acabou de deixar alguém muito furioso.”
♠♠♠♠♠ É! Nisso ele tinha razão. Alguém está fulo comigo. Mas, não havia ninguém ali, além de nós... Isso eu garanto! Por isso, eu nunca estive ali...
♠♠♠♠♠ Amanda... Meu doce! Deita a cabecinha aqui. Assim... Aconchega aqui, minha criança... Ainda bem que ainda tenho coração! E não me arrependo. Essas mostras de santidade, de pureza, de angelitude, isso me revigora! Isso me sustenta! Esse é o meu fraco... Essa é a minha força! A nossa força, minha amada...
♠♠♠♠♠ O que achou desta história?! Ninguém acreditaria, não é?!
♠♠♠♠♠ Acredita? Muito obrigado, meu anjo! Se não fosse por ti...
♠♠♠♠♠ O que tu faria no meu lugar? ... Hum?
♠♠♠♠♠ O mesmo!? É?!
♠♠♠♠♠ ‘Je te aime, monamour’!
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************************************ (Sábado, 5 de fevereiro de 2011. 03:45.)

♥♥♥ Carta para Monique ♥♥♥

********************************************************************* Viena, 27 de setembro.
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♥♥♥♥♥ Amada idolatrada Monique
♥♥♥♥♥ Empenho novamente minhas esperanças na tentativa de vos encontrar. Com esta, contam-se já duas dezenas e mais uma o número de cartas remetidas à Paris, na sublime esperança de um resposta que prove que vos encontrei bem e saudável. Tenho procurado por vós, a despeito do silêncio aparente, mas sem sucesso, o que talvez concorra para uma desconfiança desfavorável para comigo e meus intuitos. Escrevo pela vigésima primeira vez, endereçando esta à mesma casa onde nos conhecemos, e de onde não recolhi, nestes últimos anos, senão mais do que uma ou outra correspondência de um educado e impaciente senhor, comunicando-me que ‘Monique não reside mais nesta casa; mudou-se para o interior; e seu paradeiro é incerto’.
♥♥♥♥♥ Monique, garanto com todas as minhas forças que moverei céus e terra para alcançar-vos, e reparar-vos de minha negligência. Talvez nossa última estada juntos não me tenha favorecido em vosso conceito, pois preferi embarcar para Viena para cuidar de meus negócios, deixando na França o que me era ― e sempre será ― mais caro: vossa companhia. Ainda não desisti, e se me bem conheceis, sabereis que nunca em minha vida, ou após, eu soube o que é desistir de uma empresa como esta. Portanto, estejais onde for, onde quer que seja, eu vos encontrarei. Ainda não retornei definitivamente a Paris por um justo motivo, e o que me prende em Viena contarei a seguir.
♥♥♥♥♥ Os dias passam velozes e o trabalho ajuda a não sucumbir à dor da saudade. Eu comprara a passagem numa nau que sairia do Elba rumo à Normandia, e que passaria perto da desembocadura do Senna, d’onde eu embarcaria noutra rumo à Paris. Contudo, estes dias têm sido atribulados. Um vizinho que me é muito caro, e mais que isso: um mestre que retém o meu mais profundo respeito, adoeceu. Moramos na mesma rua, e ele me regala com suas lições de piano. Nem de longe faço jus à sua sabedoria, apenas empenho algumas horas de alegria e profunda disciplina para apenas mimetizar um pouco do que esse ‘virtuosi’ me passa. Embora a maioria das pessoas ignorantes do lugar digam sempre que ‘perco meu tempo e meu dinheiro’ com ele, defendo que são as minhas horas mais agradáveis estas que dispenso ao seu jugo.
♥♥♥♥♥ Dia destes, eu chegara mais cedo que de costume, para tomar aulas, e vi sair de sua casa um médico, amigo seu de muitos anos. Ele recomendou ao amigo nestas palavras: ‘― Wolfgang, escuta o que eu digo: este ar gelado e esta umidade não fazem bem algum! Retira-te para o interior, onde o ar é mais ameno.’ ― Ao que o mestre respondeu: ‘― Doutor! Mal ganho para dar conforto a minha família... Minha Constanze concordaria... Mas antes há coisas que preciso fazer...’ ― Ao que o médico acatou sem entusiasmo. Ah, se eu tivesse intimidade para lhe oferecer estada na nossa fazenda em Sevilha! Se ele não fosse tão orgulhoso, e aceitasse o pagamento que lhe ofereço... Eu pagaria muito mais pelas aulas. Mas o mestre é honesto. Com certeza, o senhor Mozart não deixará Viena até que reconheçam sua maestria.
♥♥♥♥♥ Agora que está adoentado, não posso deixar Viena também. É algo mais forte. O respeito e a admiração que sinto por ele me prendem aqui até que ventos melhores soprem, e a favor. Ajudo no que posso a família, a despeito de seu orgulho. Deixei uma boa soma com um antigo empregado meu, que tem uma casa de câmbio na cidade, para despesas com alimentos, médicos e outras emergências que possam concorrer contra meu maestro. Com isso, aproveito também para empenhar forças em ampliar os meus negócios com as pessoas daqui e dos arredores.
♥♥♥♥♥ Ademais, penso apenas no momento eu que vos verei novamente, derramando alegria daquele sorriso radioso que me cativa; fitando-me com aqueles olhos puros, de doçura incomparável, como que me pedindo para ficar; envolvendo-me com as mais suaves e aveludadas madeixas ruivas que já iluminaram Paris. Na tão desejada hora, seremos novamente Tristan e Isolde, e veremos o luar sobre a Catedral de Saint-Michel, bem como fazíamos nos áureos dias de alegria, quando vos tornei minha esposa.
♥♥♥♥♥ As noites têm sido dolorosas, repletas de angústia e solidão, e isso não é o mal maior. Pois o que me mata ― se é que é possível ― é a ausência de informações sobre vosso paradeiro. Monique, por quê?! Por que vós desaparecestes de minha vida sem dar aviso, tão repentinamente, e tão sorrateiramente? Cheguei a pensar coisas horríveis, como achar que vos afastastes por ameaças ou cerco de caçadores... Contudo, membros locais garantem que não há caçadores atentos, ao menos algum que mereça atenção... E com base nisso, averigüei por meio de amigos confiáveis os arredores da cidade nestes dias, quando completa-se já sete longos meses que não vos vejo. Nada há que ameace nossa existência. Portanto, sei que o mal é outro. Só não sei do que se trata.
♥♥♥♥♥ Cara Monique, parecestes tão feliz na última vez em que estivemos juntos. Sorristes ao acaso, e nos aconchegamos como de costume tão avidamente! Seja lá o motivo que for, preciso sabê-lo, ou definharei. Não quero que vos exponhais desnecessariamente. Não desejo isso, nem acarretar riscos à vossa vida. Já sou culpado de pô-la em perigo, desde quando vos abracei. Mas quero zelar pelo que vos resta...
♥♥♥♥♥ Deixemos um pouco de lado as lamentações, pois desejo relatar sobre como têm sido meus últimos meses, e narrar o que omiti nas últimas cartas. Espero que, quando a lerdes, tereis também júbilo e graça, ao invés de somente impressões de dor e de lamentos.
♥♥♥♥♥ Quando parti, em março passado, deixando para trás vosso luminoso sorriso, foi para encarar noites e noites num barco fretado, comandado por um sócio meu, a quem beneficio em troca de favores como este... Ele não é um ‘membro’, nem está preso por ‘laços de sangue’. Apenas é um mercador que vê muitas vantagens financeiras em fazer negócios comigo. Às vezes penso que ele sabe sobre minha natureza, que talvez desconfie, não duvido... Mas, nesta maravilhosa era de luz e sabedoria científica, quando as superstições medievais caíram ante o avanço das moderníssimas novidades, as pessoas estão mais racionais, mais céticas, graças à luz de ideais como o iluminismo. Após a recente Revolução em ‘nosso’ País, tudo mudou muito: estamos mais seguros do que nunca estivemos. Bem, enfim, o fato é que Arnaud sabe que não gosto (não posso) ser acordado (nem incomodado) durante o dia. Todos os dez marinheiros, nesta embarcação de quarenta pés, entendem e respeitam a vontade excêntrica de seu mestre, sem ponderações (ou especulações...) sobre quaisquer ordens dadas. Procuro me alimentar sempre bem, antes da viagem. Se houver alguma emergência, temos muitos ratos no navio. Paramos sempre em portos menores e pulguentos, onde abastecemos com tudo o que precisamos. Isto torna possível que viajemos muito, e que enriqueçamos muito nossas boas economias.
♥♥♥♥♥ Em Viena, não é diferente. As pessoas são muito empenhadas no trabalho, ou melhor: em ganhar dinheiro, o que garante que as fofocas não ultrapassem a barreira da simples observação de certas futilidades. Quem vai identificar um predador vestido com seda e capa de veludo em um teatro, numa era em que todos tentam agradar e bajular os mais abastados, por piores ‘monstros’ que sejam? Estamos na Europa, o centro das frivolidades! Vivam as aparências! E o resto, seja o que Deus quiser...
♥♥♥♥♥ De tudo o que narrei em outras cartas, querida, negligenciei um fato. E não por falta de memória, mas por prudência. Narrá-lo-ei em seguida à elucidação deste ponto, que envolve a prudência.
♥♥♥♥♥ Querida, como vos ensinei outrora, sabeis que não devemos, nunca, por nossas vidas em perigo, revelando nossas essências aos ‘não-membros’. Estou citando isto porque considero importante, se bem que bem o sabeis. Em nossas correspondências, ― que poderiam, enfim, ser interceptadas por ‘desocupados’, ― nunca tratamos sobre certos assuntos; nunca mencionamos certas palavras; nunca citamos nomes (...); e nunca deixamos pistas claras sobre nossas intenções. Isto vós sabeis. Por isso é que evito contar tudo o que nos acontece aqui, tão distante, sabendo que a carta levará dias ou semanas, passando por mãos diversas, para chegar aí; e que, aí chegando, pode colocar-vos em risco. Mas, como o mensageiro é experiente, e como pretendo voltar assim que a saúde de meu amigo e mestre estiver recuperada, envio-vos esta na esperança de que, havendo retornado, vós podereis regalar-vos com minhas aventuras. Agora, deixando um pouco de lado a prudência, posto que não vos encontreis ainda em Paris, contar-vos-ei um fato deixado de lado anteriormente. Foi um encontro nada agradável, que tive com um ‘cachorrinho’.
♥♥♥♥♥ Minha amada, preparai vosso coração para esta peripécia. É de tirar o fôlego, para ser ‘metafórico’. Eu cheguei à Viena e aluguei quatro quartos numa pensão de três andares, vizinha a outros prédios residenciais. Como era de se esperar, estranharam um pouco o fato de eu sair apenas à noite, mas justifiquei-o: pele e olhos sensíveis.
♥♥♥♥♥ Conheci o maestro a andar pela rua de pedras na terceira noite. Eu havia retornado de um atendimento a um comerciante. Eu lhe fizera uma sangria para diminuir a febre ― É incrível, mas em pleno século dezoito há pessoas que ainda acreditam nisso! ― e assim ganhei a noite. Ao aproximar-me da entrada da pensão, vi o maestro à espera de sua senhora, que havia visitado o boticário em busca de um xarope. Conversamos, e logo simpatizei com ele. Ele falou de sua afeição pela música, e logo marcamos a primeira aula. Após uns dois meses, ao passearmos pelas ruas à noite, o senhor Wolfgang apresentou-me um conhecido, dono de umas terras fora da cidade. Insisti em visitá-las, pois negocio com cavalos, e gostaria de ver tudo o que o fazendeiro tinha. Expliquei minha ‘doença’, e marcamos uma noite para a visita.
♥♥♥♥♥ Na noite combinada, fui à fazenda, sem meu maestro. ‘Monsieur’ François e seus filhos, todos franceses, me receberam com entusiasmo; primeiramente, por saberem que eu moro em Paris, lugar onde viviam anteriormente; e depois, porque sabiam que nosso negócio seria ótimo para ambos. Um seu filho, Jean, o mais novo, era a pureza em pessoa: alegre, ligeiro e esperto; tinha dezesseis anos, e cuidava dos animais como seu pai; ou até melhor, pelo que este me disse. O outro, que se juntou a nós mais por mando do pai que por vontade própria, era um turbilhão de conflitos psicológicos: René tinha um sorriso sincero, um bom trato, e um magnífico coração; mas também algo que me chamou a atenção; e que me deixou em desespero...
♥♥♥♥♥ Eu senti no ar, no cheiro, na alma, e quis ir embora. O rapaz me encarava. Minha presença ali muito o incomodava. Definitivamente, ele não me queria por perto. Fizera várias ameaças veladas, compelindo-me a deixar sua família. Mas seu pai fez questão de minha presença. O rapaz, então, logo que pôde, deixou-nos e saiu para o campo. Eram nove horas da noite, e seu pai ficou zangado. Disse que, nestes últimos meses, o rapaz fazia isto seguidamente, retornando apenas na manhã seguinte.
♥♥♥♥♥ Pedi para cavalgar um corcel árabe, todo branco, e ‘Monsieur’ François me permitiu. Saí campo afora com o animal, já desejando comprá-lo com mais uns dez iguais, quando cheguei a um velho poço no meio de uma aglomeração de árvores a leste da propriedade. Eu havia cavalgado por uma hora. Disseram-me para ‘não ir longe’, que aquela região ‘era assolada por monstros’. Eu ri, pensando que algum membro havia comprometido a ‘Máscara’ por ali também. Diziam que animais apareciam destroçados e que o povo temia andar à noite nos arredores da fazenda. A claridade da lua, para mim, lembrava um dia de verão, como aqueles que eu um dia vira na praia. Então, um rosnado trouxe à minha alma a compreensão do que eu ouvira: não era um membro... Ali, naquele local, havia algo que eu nunca gostaria de encontrar.
♥♥♥♥♥ Quando dei meia-volta, e pretendia galopar para junto dos demais, o cavalo entrou em desespero. Caí, e ao levantar, o animal saiu em disparada rumo à sede. Na sua anca direita, quatro cortes enormes reluziam ao luar, como de uma garra, de algo muito grande. Olhei para o lado da mata, e vi a maior coisa que já tinha visto. Um lobo gigantesco, com olhos vermelhos e dentes à mostra, rosnava para mim. O que salvou minha vida não foi nem minha rapidez, que, afinal, é páreo para ‘um destes’; nem foi o fato de eu haver alcançado o cavalo e montado; enfim, não foi a piedade do monstro... Foi, sim, o fato de os homens do fazendeiro chegarem com pistolas e arcabuzes, todos carregados com bagas de prata. A criatura nem os esperou. Fugiu mata adentro, deixando livre o pobre cavalo (Afinal, eu seria mais rápido que o animal, e talvez me servisse ainda de outro recurso, não sei...). O fato é que sobrevivi a um lobisomem. E o que mais me preocupou: não me disseram, mas possivelmente, aquele seria o filho mais velho do pobre François.
♥♥♥♥♥ Apesar das dúvidas do meu novo sócio, e de meus receios, retornei mais vezes. Fiz questão de pagar pelo cavalo ferido, que acabou sacrificado pelos homens por medo de possíveis reações adversas. E comprei mais vinte iguais.
♥♥♥♥♥ E esta foi minha história, caríssima Monique. Poucos como nós sobrevivem a um encontro com um lobisomem. Os outros sim, afinal, eles não atacam pessoas comuns. Sabei, poucas vezes senti tanto medo. Eles nos odeiam. Eles nos destruiriam a todos se pudessem. Sinto apenas pelo velho pai, que sofrerá ao ver o filho sumir, a cada lua cheia, sem saber se este retornará a salvo, com muitas cabeças de gado e cavalos a menos, ou se o encontrará nu, crivado de bagas de prata, no meio da mata. É triste.
♥♥♥♥♥ Deixo aqui meu relato de minhas aventuras, no qual dou fé de dois acontecimentos distintos: meu encontro com o mestre, e meu encontro com a fera. Ademais, cuidarei de retornar logo à nossa amada Paris, para vos dar conta disso tudo pessoalmente; isso, se eu vos encontrar... Parto assim que puder, e, se vento houver, se a sorte me permitir, terei com vós logo. E para sempre.
♥♥♥♥♥ Amantíssima Monique, rezo agora para que vos encontre bem, saudável e segura. Nestes tempos de incredulidade, apenas quem convive com o inacreditável crê em coisas sobrenaturais. O mundo mudou, e o ceticismo toma os corações da população, que cada vez mais visa o lucro e o conforto, deixando de lado as crenças no além; mas também a pureza dos corações. Isto, para nós, é tanto uma bênção, quanto uma maldição. O que está destruindo a humanidade, está nos fortalecendo. Mas, quando toda ela estiver acabada, o que será de nós?
♥♥♥♥♥ Abraços, beijos, e minha sincera veneração a vós, eternamente, senhora de minh’alma, alento de meu desespero, e (como dizia Gregório, meu mestre lá em Recife, há uns cem anos), ‘anjo dos meus altares’.
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*********************************************************** Viena, 27 de setembro de 1791.
*************************************** De vosso sempre fiel Gabriel Evangelista Diniz Duarte
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******************************************************************************** BB
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*********************************** (Segunda-feira, 31 de janeiro de 2011. 22:35.)

♥♥♥ Angélica à Luz da Lua ♥♥♥

************************************************* “Às vezes a Justiça parece surgir da fonte
******************************************************** mais improvável. Cuidado com as
******************************************************** companhias inofensivas demais...”
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♥♥♥♥♥ Lembro como se fosse ontem... Às vezes quero esquecer. Acho que poderia ter sido diferente... Mas outras vezes sinto que gostei. Ah, Beto! Se fosse em outros tempos... Nunca imaginaria tamanha facilidade. Gabriel e Alexei me compreendem... Mas vocês... Isso me deixa confusa, maluca mesmo. Preciso desabafar, Beto! A noite recém começou. Por favor, beba devagar. Sim! Eu quero te contar isso...
♥♥♥♥♥ “Eu fui criada, como tu bem já sabe, num circo. A boa senhora, dona do Circo, que me achou ainda bebê, num cesto, e que cuidou de mim, foi internada num asilo, pela filha legítima dela, quando eu tinha 12 anos. Como sofri! Então, aos 16, para evitar diversos abusos, eu fugi, e passei por vários orfanatos, e boates de ‘strip tease’, até conhecer Gabriel.” Mas esta história tu já deve conhecer, exceto sobre o fato de ser eu mesma, não é?! Afinal, tu é um bom policial, ou não!? Haha! Claro que já sabe. Senão, como teria achado meu endereço? Mas, tu parece tão surpreso...
♥♥♥♥♥ Acho que sei, pelo teu rosto, pela tua expressão, o que te incomoda... O que não se encaixa na minha história... É minha idade, não?! Sim! Isso te deixa intrigado! Tu olha para uma garota de 17 anos, e não vê nada além disso. Mas deixa eu te contar algo acontecido há trinta e seis anos atrás. Como sei?! Acredite: eu estive lá...
♥♥♥♥♥ “Eu tivera uma noite e tanto, com a casa cheia, o som dos aplausos, os admiradores, nossa! Estava tudo saindo maravilhosamente bem. Sim, eu havia voltado para o Circo, um outro Circo, e estava feliz. Dois anos havia que eu conhecera meu amado Gabriel. Eu sentia que tinha uma nova chance de fazer algo que amava, e que ainda amo, e jurei me dedicar inteiramente a isso. Naquela noite, voei como uma fada no tecido colorido sobre os expectadores que suspiravam... E fui também a ‘partner’ do atirador de facas e do mágico. Senti o vento das facas que enterravam-se a centímetros do meu rosto.... Todos assoviavam quando eu aparecia.
♥♥♥♥♥ “Após o espetáculo, convidei Sônia, a outra ‘partner’, para irmos a uma lanchonete, onde o pessoal do Circo costumava se reunir aos domingos. Saímos as duas a pé, por uma rua de chão batido, perto das onze da noite. Vestíamos, eu lembro bem, nossos “macacões” que estavam na moda: calça e blusa numa única peça sintética, justa, e em cores metálicas. A Sônia estava de azul ciano e eu de amarelo ouro. Na lanchonete, pedimos refrigerantes (eu nunca bebia, apenas pedia).
♥♥♥♥♥ Foi então que apareceu um sujeito muito incômodo, já meio afetado, com aquele bafo nojento de cerveja. ‘Vanderson’, foi como disse chamar-se.” Argh! Desculpa, Beto... É que sinto náuseas só de lembrar. “Ele não era agradável, mas era engraçado vê-lo, pois parecia um bicheiro: todo cheio de ouro, a camisa aberta, óculos escuros enormes, e um bigodão ridículo. Bem, ele começou com aquelas historinhas, papo de conquistador, cantadas grosseiras pra cima da gente, e não aceitou bem as nossas recusas. Daí, chegou outro, no mesmo estilo, e já bêbado. ‘Heveraldo’, ao que me lembro. Claro que eles se conheciam! Lógico! Imagina... Então, convidei Soninha para sairmos dali. Mas isso muito os ofendeu, e eles então passaram de apenas inconvenientes a ameaçadores.
♥♥♥♥♥ “─ Desculpem, rapazes, mas temos que ir agora. Vem, Soninha. ─ Justifiquei, já puxando Sônia pela mão.
♥♥♥♥♥ “─ Ta limpo, rapaziada! Essas vadias são daquele Circo de ciganos ladrões!  ─ Disse um outro cliente; e um outro ainda emendou:  ─ E devem cobrar barato...
♥♥♥♥♥ “─ Então nós vamos ter uma conversinha, garotas! Sejam boazinhas! ─ Disse o Vanderson, segurando-me pelos braços.
♥♥♥♥♥ “Os outros quatro sujeitos que estavam sentados, todos amigos dos dois safados, também levantaram-se, e o ‘chefe’ continuou:
♥♥♥♥♥ “ ─ Estes são nossos amigos: Miro, este negrão bem-dotado; Paulo, esse mulato forte; e os garotos Sandro, o moreninho, e Roberto, o mais loirinho... São nossos jovens aprendizes lá na oficina. Tudo gente finíssima! Vocês vão gostar da gente.
♥♥♥♥♥ “Sônia queria chorar, e eu rir. Sim, eu ‘tava’ com medo. Mas era também algo diferente o que eu sentia. Não havia ali ninguém do Circo, apenas seis homens estranhos, e  dois balconistas, que pareciam não se importar se aqueles caras violentassem a gente ali mesmo. Provavelmente, os tarados nos matariam, e os atendentes ainda os ajudariam a esconder nossos corpos, para ‘proteger’ o negócio. Minha amiga estava ficando branca, e eu também já não estava confortável... Percebi que não haveria saída. Era ‘dar ou ser comida’. Senti um mal estar que sei lá... Mas depois passou. E foi então que propus:
♥♥♥♥♥ “─ Rapazes, vamos fazer o seguinte: deixem a Soninha ir, e eu fico aqui com vocês!  ─ E lancei um sorriso que misturava malícia e excitação.
♥♥♥♥♥ “─ E por quê faríamos isso?! Ora, se eu gostei justamente foi da morena! ─ Disse o mulato mal encarado, apoiado pelo negro alto.
♥♥♥♥♥ “─ Eu dou conta de todos! Além do mais, ela teve sífilis! E eu estou ‘limpa’.  ─ Menti convicta, mas nervosa, pois eu não sabia ainda ao certo o que iria fazer.
♥♥♥♥♥ “─ Parece que a loira sabe o que diz, macacada! Vamos ver no que dá! ─ Disse o negro já tonto da cerveja.
♥♥♥♥♥ “A custo, eu os convenci a me deixar que levasse Soninha para o nosso trailer, prometendo que voltaria à lanchonete em seguida para ‘a festa’. Houve protestos e revolta, mas o ‘gostosão’ (o Vanderson) disse que ‘tava limpo’, que ‘se eu não voltasse logo, eles colocariam fogo no Circo todo’. Era cada vez mais um caminho sem volta.
♥♥♥♥♥ Assim fiz. Levei minha colega para casa, a pus na cama, e menti que ‘não voltaria lá’. Porém, já decidida, tomei o caminho da lanchonete, que àquela hora já estaria fechada. Eram duas da manhã de uma segunda-feira. Eu vestia agora algo diferente: uma saia bem curta, toda drapeada, de cetim cor prata; uma blusa tomara-que-caia, também em cetim cor prata; e um par de sandálias de tiras, com salto alto, também cor prata. O motivo? Era a roupa mais fácil de 'limpar' que eu tinha. Eu tinha fome, e não me alimentara direito nas noites anteriores. Resolvi juntar o útil ao necessário. Levava na mão um refrigerante, mas não dera sequer um gole. Eu levava na minha bolsa um batom rosa. Lembro tê-lo pego, e passado nos lábios, segurando um pequeno espelho de maquilagem, sob um poste de luz de mercúrio. Lembro ainda de haver olhado na bolsa, e ter visto uma barra de chocolate. ‘Obrigada, querida!’, imaginei ter sido Soninha que a colocara ali. A peguei, e vi nela a gravação que dizia: ‘válido até julho de 74’. ‘Não vai durar tanto!’, pensei consolada. Essa barra de chocolate era apenas a minha fonte de coragem, e não de alimento. Parei diante da lanchonete, mas não vi ninguém.
♥♥♥♥♥ “Após instantes, encolhida e esfregando meus braços como se sentisse frio, ouvi o som de um carro aproximar-se por trás de mim. Era o cara chato de antes (o Vanderson). Ele buzinou, e mandou que eu entrasse na DKW novinha. Eu me fiz de difícil, fiz cara de medo, então ele desceu do carro. Disse-me que estava pronto a ir me buscar no Circo, se eu não aparecesse... E disse-me que eu ‘jamais esqueceria daquela noite’. Nisso ele tinha uma infeliz razão. Sinto ainda algum remorso.
♥♥♥♥♥ “Ele me pegou pelo braço e me levou para junto das rústicas mesas de madeira da lanchonete, onde também apareceram maldosos os outros cinco caras. A tímida luz da lua, obscurecida ainda por nuvens, talvez os fizessem parecer vultos grandes e ameaçadores. Um deles gritou algo sobre ‘a festa haver começado’, outro disse algo como ‘por-me na mesa para ser servida’... Não lembro exatamente das palavras. Foi apavorante! Ainda bem que eu estava sozinha... Dois deles já pegavam-me nos seios, um apalpava minha bunda com força, e como cães, eles pareciam querer me despedaçar.
♥♥♥♥♥ “Então, comecei a pôr em prática meu plano: Disse que, antes de dançar em cima da mesa (tirando a roupa, é claro!), eu queria ‘sentir’ a pressão dando uns amassos individuais, num pequeno banheiro que tinha a porta voltada para a rua.
♥♥♥♥♥ “Pedi que o mais bêbado viesse primeiro, e Heveraldo veio comigo, ao som de gritos e palavrões libidinosos. Entramos no pequeno banheiro e, após dois minutinhos, saí sorridente, dizendo que o rapaz havia ‘pregado’ por causa da bebida, e dos ‘amassos’, claro... Todos riram e um disse para que os outros o deixassem lá. ‘Seria um a menos para dividir o prêmio’. ‘Graças a Deus!’, pensei. Pedi que um segundo fosse comigo até atrás da lanchonete, e Miro veio feliz, bebendo cerveja no gargalo. Após dois minutos, voltei para perto dos outros. Eles nem quiseram saber o que houve com o negro. Chamei o terceiro, que era o Paulo, e este já estava muito tonto. Foi fácil também. Deixei-o atrás do trailer, pertinho do outro.
♥♥♥♥♥ “Voltando, disse ao ‘meu bicheiro favorito’ que era a vez dele. Este, vitorioso, comentou algo sobre eu ‘sempre voltar limpando a boca’ num lenço vermelho que eu tirava da bolsa. Ele dizia aos outros dois que eu ‘deveria fazer mágica com a boca’. E sugeriu ‘fazermos aquilo’ na DKW dele. Adorei, pois assim ficaria muito mais fácil.
♥♥♥♥♥ “Contudo, eu mudara de idéia. Implorei a ele que ficasse por último. Disse-lhe que o ‘tratamento’ reservado a ele seria o mais ‘vip’, e que seria muito especial, bem diferente do dispensado aos outros. Ele, impaciente, concordou, já que seria assim. Peguei um dos restantes pela mão, Sandro, e percebi que ele era bem novinho. Talvez tivesse uns 20 anos ou menos. Levei-o até a parte traseira do trailer, onde dois homens já estavam caídos, como bêbados que eram. Ele ainda comentou sobre ‘o que eu teria feito a eles para estarem fracos assim’. Eu sorri. Este seria o primeiro que realmente me daria alguma coisa, algum prazer. O primeiro a valer a pena. Era bonito, perfumado, e não havia bebido. Eu estava ficando fraca, e enfrentar o grandão consumiria muita energia. Por isso, eu precisava ‘comer’. Este garoto estava muito excitado, e seu pulsar vigoroso despertou minha libido. Ele se gozou só com minhas carícias, com roupa e tudo. Beijei-o, então... Eu estava em pleno êxtase, quando ouvi uma voz jovem gritar qualquer coisa. Voltei o olhar na direção dela, e sorri. Roberto estava nos espiando. Aterrorizado, ele correu para junto do ‘meu amigo cafetão’, falando alto e afobadamente. Dei uma última lambida no pescocinho do garotão. Deixei-o ali, caído, gemendo e balbuciando coisas incompreensíveis, e voltei para perto dos outros dois.
♥♥♥♥♥ “O garoto que nos espiava, que era o mais novinho, estava muito assustado mesmo. O ‘gigolô de camisa florida’ mandava-lhe ficar calmo, e dizia que ele ‘estava assim tão nervoso só porque nunca antes participara de uma dessas festas’.
♥♥♥♥♥ “─ Roberto... Tá com medo de mim, moleque?!  ─ Perguntei, sorrindo maliciosamente para o menor.
♥♥♥♥♥ “─ Quantos anos tu tem?! Dezesseis?! Eu adoro garotinhos!  ─ Completei.
♥♥♥♥♥ “O ‘taxista enfeitadão’ mandou o menino vir comigo. Mas este tremia feito vara verde. ‘Sim! Ele viu!’, eu pensei. ‘Mas vai contar pra quem?!’ Dei uma risada gostosa e fiz sinal para o grandão, dizendo que eu não faria nada com ‘uma criança’. O sujeito bem que gostou, e já vinha pra cima de mim com aquelas mãos grandes e cabeludas quando, num gesto involuntário, o garoto gritou advertindo-o para que não o fizesse. Foi em vão. O menino implorava para que o cara não me tocasse, e para que fossem embora dali. Sem ser ouvido. Eu senti que ‘o gostoso da festa’ estava perto. Cheguei no bofe mais velho e, só em tocá-lo, fiz com que ele se gozasse, com a calça branca e tudo. Enquanto o ‘caminhoneiro flatulento’ me agarrava e bolinava como um animal, esfolando meu pescoço com aquela barba cerrada, e com aquele bigodão nojento, o garoto gritou algo da porta do banheiro. Ele puxava um corpo para fora. O homem me soltou, e já iria ralhar com o moleque, quando viu aquele primeiro bêbado, seu amigo, estirado no chão, inerte. O fortão me empurrou, e caí sobre a mesa. Ele foi conferir. Após isso, o guri o levou para trás do trailer, onde apontou três corpos estirados que jaziam escorados na parede. Apenas um ainda respirava...”
♥♥♥♥♥ Não, não ria, Beto! Não foi engraçado...
♥♥♥♥♥ “‘A festa começara’, pensei. Nunca eu vira tantos gestos desesperados; nunca eu ouvira tantos palavrões contra mim, ora obcenos, ora incompreensíveis; nem tantas frases de esconjuração. Ao mesmo tempo em que me chamavam de coisas indescritíveis, pelo medo que eu lhes causava, o ‘contraventor excitado’ ainda ameaçava-me de estupro! Que pervertido! Mas o ‘folgadão da DKW’ não teve coragem, e tirou uma navalha do bolso, abriu-a, e ameaçou-me com aquilo. Acho que ouvi algo assim tipo: ‘Eu vou te cortar, cadela suja!’ ‘Tu vai ver só, piranha traiçoeira!’.
♥♥♥♥♥ Diante de tanta gentileza, retribuí: ‘Porco sujo! Rato imundo!’, e saltei no colo dele, abraçando-o com braços e pernas, fazendo-o desequilibrar-se. Quando ele bateu-me contra uma das colunas de madeira que sustentam o telhado, caí sobre uma das mesas, indo ao chão. Vi o sujeito correr rumo à sua DKW, e algo espirrava do seu pescoço. A meio caminho do carro, ele caiu, convulsionando, para em seguida parar de se mover. Sobre uma mesa, debruçada como se estivesse na praia, eu assistia a tudo sorrindo. Quando o cara finalmente entrou em ‘rigor mortis’, voltei o olhar para o menino que, encolhido em um dos bancos de tábuas, imóvel mesmo, congelado de pavor, olhava-me como se implorasse, mas sem muita esperança de redenção. Ainda brinquei com ‘a refeição’, fazendo um olhar que dizia que ‘ele seria o próximo’. Ele estava para desmaiar, quando segurei seu rosto entre as mãos, e desmenti a ameaça, olhando bem dentro dos seus olhos:
♥♥♥♥♥ “─ Fica tranqüilo, Roberto! Eu não machuco crianças.  ─ e o beijei maliciosamente na boca.
♥♥♥♥♥ “─ Além do que, já me alimentei hoje. Graças ao italianinho bonitinho que não ‘tava’ bêbado. Vai pra casa, moleque! E não se esqueça: foi um animal selvagem que atacou estes vermes!”
♥♥♥♥♥ Sabe, eu não me alimento nem de bêbados, nem de drogados, nem de gente suja e engordurada como aqueles. A tua sorte foi que o teu amigo garotão saciou a minha fúria. Ele iria sobreviver, só suguei um pouquinho. Mas os outros, estupradores nojentos, violadores de meninas indefesas... Ah... A estes eu dei o que mereciam...
♥♥♥♥♥ “Ainda dei uma última olhada no garoto que, embora mais aliviado, ainda não conseguia se mover. Lancei-lhe um beijinho estralado de longe, sorri, e voltei para o Circo, onde destruí qualquer prova da minha estada naquela lanchonete.”
♥♥♥♥♥ Ah, vejo que tu ficou sério de novo! Acredita agora, Beto?! Prazer, eu sou Amanda. Nossa! Tu cresceu, heim?! Tá um homem... Espero que tu não ande mais em tão más companhias... Tu te tornou policial por vocação? Ou será que foi porque tu sempre foi obcecado com o que aconteceu? Bem, agora tu já me achou! O que vai fazer, Beto?! Vai me prender?! Vai convencer alguém que uma garota de 17 anos estraçalhou quatro homens enormes, há trinta e seis anos atrás, deixando por testemunhas dois jovens ‘usuários de drogas’?! Sim, porque foi isso o que pensaram de vocês... Ou será que tu veio até mim pra me matar, pra vingar aqueles vermes?! Não creio! Não se pode matar o que não vive! Minhas bochechas rosadas e minha ‘respiração’ estão te enganando?!
♥♥♥♥♥ E, além do mais, a justiça foi feita. Boa noite, Beto! Agora, me deixa sozinha... A noite é longa, e a fome bate quando menos se espera. Ainda mais quando se tem 17 anos... e para sempre. Se quiser, volta uma outra vez, pra tomar um suco e ouvir mais histórias. Às vezes me sinto muito só. Beijo, Beto!
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************************************************************************************* BB
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♠♠♠ Cruz Encarnada ♠♠♠

******************************************************** “Justiça! Todos a querem e clamam alto.
******************************************************** Mas a compreensão e o entendimento
******************************************************* são ignorados quando o ‘summum Jus’
******************************************************* inflama os povos que estavam tão perto...”
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♠♠♠♠♠ Amanda! Que surpresa agradável, chegar aqui e te encontrar no sofá! Há tempos que não te vejo, nem mesmo na escola de circo, onde nos conhecemos... É! Eu estive longe... Tudo bem? Como tem passado? ... Gabriel me disse que falta pouco pra tu ser advogada... Além de ser uma bela pianista e uma exímia acrobata. Ele sente muito orgulho. Já de mim... Eu nem sempre estou por perto para ajudar... Mas... O que foi?! ... Que olhos tristes... Tu pode ser honesta comigo, querida: algo te deixa desconfortável? Eu fiz algo? .... Eu sei ― Posso ver pelo teu olhar ―; não sei se é desconfiança, mágoa, medo ou algo além... Quando alguém, especialmente tu, me olha assim, eu sofro... Nunca te fiz mal algum, e nem faria... Sinto saudades de quando, anos atrás, éramos uma família unida. Infelizmente, tive motivos para me afastar. Te amei desde quando te vi pela primeira vez. Gabriel é infalível nas escolhas. E eu sempre te dediquei todo o amor de um tio, embora sejamos mais irmãos... Sempre pareci mais irmão dele do que filho... Sempre revezamos, contigo nos braços, mas durou bem pouco... Háhá... Estas relações incestuosas até me lembram a velha Europa... E isso dói! Mas... Ah... Vejo que tu descobriu bem mais do que já te contei: isso na tua mão... É, sim, é meu! Um dia te contaria; mas, pelo visto, tua curiosa sagacidade revelou bem mais do que tu esperava... Mas como...?! Ah! ... Não importa. Agora tenho que emendar. Um dia te contaríamos. Deixa eu tentar explicar. <Silêncio e hesitação>.
♠♠♠♠♠ Vancouver é linda, não?! Veio assistir as Olimpíadas, ou também participar de alguma modalidade noturna? ... Teus olhos me atingem, Amanda. Isso é raiva?! É decepção?!  Lágrimas... Olha! Eu estou aqui, neste hotel, no apartamento de vocês, porque Gabriel me chamou. Eu não quero impor minha presença. Não os vejo há mais de doze anos... Achei que iria receber um abraço... E um beijo no pescoço, como aqueles... Mas mesmo que tu tenha estas dúvidas, ainda sou eu, minha menina!
♠♠♠♠♠ Amanda... Acredita em mim! Eu nunca esconderia, e não teria porquê! Somos o que somos! O quê teria de pior em mim quando respirava? As pessoas criam heróis e bandidos. Os humanos vivem dessa falsa segurança, baseada em uma sociedade hipocritamente norteada pelo “certo” e “errado” que alguns ditam. <Pausa>.
♠♠♠♠♠ Sim, isso aí era meu! Como também os uniformes expostos nos manequins, no salão de coleções do Gabriel. Aqueles que, talvez, tu pensasse que tivessem sido comprados em uma loja de relíquias. Não o foram! ... E o preço foi minha alma. Entretanto, apesar dos julgamentos apressados das pessoas, e de membros de quaisquer covis, eu nunca cometi excessos. Ouça! E julgue... Começarei pela parte que tu conhece:
♠♠♠♠♠ “Minha infância foi feliz. Meu pais me educaram. Minha mãe, uma francesa meio cigana, fez questão de por seu sobrenome em mim: Leblanc. Meu pai queria me chamar apenas Siegfried Keller, mas cedeu porque ainda não havia problema algum. Minha mãe me ensinou a gostar do circo, e desde criança eu a acompanhava diariamente aos arredores de Viena, onde um tio dela mantinha um grande picadeiro. Foi lá que aprendi a balançar no trapézio e nas cordas. Foi lá que, mais tarde, me tornei atirador de facas. Meu pai, como bom alemão instruído, me fez ter aulas de piano. O tal tio me ensinou violino. Assim eu passava o tempo, entre a escola e as aulas. Mozart, Bach... Eu aprendi muitas coisas na época. Mas o circo... Esse era o que eu gostava. Estes eram tempos de paz, e ninguém ali imaginava...” <Pausa>.
♠♠♠♠♠ A parte que tu ainda não conhece... <Silêncio>. “Adolescente, penei. Meu pai me fez ir à academia militar (o Diretor era seu primo). Dissera que ali eu teria um futuro. Que estaria seguro. Isso era lá por... Sei lá que ano! Fizeram de mim um boneco moldável e obediente. Até ali, tudo era disciplina e teoria.
♠♠♠♠♠ “No inverno de 1938, deixei a academia militar, aos 23 anos. Direto para ser um polido tenente, e comandar uma das garbosas companhias do Reich. Minha família percebera o erro. Já não mais haviam circos nem ciganos. Todos se foram, inclusive minha família (que, afinal, era ‘mestiça’). Por questões filosóficas, mudaram-se para a Suíça, onde a neutralidade parecia ser um alento à guerra iminente. Tentaram levar-me, mas temi desertar e ser perseguido. Temi mais por minha família. Me despedi sem saber o que me esperava. Em 1939, eu era pára-quedista da Lufthwafe, e ensinava alguns soldados do Reich a saltar nos campos da Baviera. Fui à França com minha companhia, com a missão de patrulhar as glamurosas ruas de Paris, e limpá-las dos perigos oferecidos pela fraca mas incômoda Resistência Francesa. Isso, lá pelo outono de 1941. <Pausa>. Apesar de ser o típico soldado ariano que mein Fürher elogiava, eu não gostava da idéia de invadir a França, o país de minha mãe.
♠♠♠♠♠ “Eu era dado à festas e cabarés. Lá, conheci Helène, uma dançarina de cabaré com sardas e cabelos vermelhos. Apaixonei-me. Ela correspondeu. Daí até 1942, eu ora estava ali, ora patrulhando. Sabe, não gosto de matar. Mas fui treinado para isso. A SS tentava impetrar na nossa alma a doutrina da supremacia ariana. Eu parecia estar imune... Enquanto alguns compatriotas iam às lágrimas diante das torrentes da propaganda ‘Deutschland Über Alles’, outros apenas sentiam-se perdidos, como eu. Combati os ingleses e exterminei muitos. Americanos, tive pouca oportunidade, mas abati alguns.” Isso não me incomoda, garanto.
♠♠♠♠♠ Não me imagine com aquele impecável sobretudo repleto de botões dourados, condecorações Nazi, e o broche da SS na gola. Afinal, não éramos a SS... Odiávamos a Shutztaffel! Éramos apenas soldados regulares, a Wehrmacht. Éramos nós quem dávamos a cara a tapa ― ou melhor: o peito ao aço... Enquanto as Waffen-SS chegavam para levar os "louros", nós estávamos abrindo caminho na linha de frente! Por isso, me imagine vestido exatamente como todos os outros soldados alemães, com aquele capacete característico daqueles sujeitos que, nos filmes, ficam atirando nos "mocinhos".
♠♠♠♠♠ “Prometi à Helène levá-la comigo para casa. No verão de 42, um Major, não lembro o nome dele, desejou minha dançarina. Pedi dinheiro a meu pai, e enviei-a para a Suíça, sob minhas expensas. O tal Major, irritado, mas sem um motivo convincente para me prejudicar, acabou tendo sua doce vingança: arranjou para que eu fosse transferido. Me mandariam para Treblinka. Mas, diante da misteriosa destruição de Treblinka, acabei em Auschwitz-Birkenau. Então, eu já era Capitão. O Capitão Keller. Eu não gostava de combater, de matar gente, quer fossem inimigos ou não. E ali, num campo de concentração, não haveria combate. Entretanto, haveria muito mais sofrimentos. Me mandaram também para um campo de trabalhos perto de Nuremberg. Por fim, achei-me num campo de prisioneiros de guerra na Ucrânia. Todos estes movimentos em apenas alguns meses. Neste último, fiquei mais tempo: dois meses. Conheci um grupo de ciganos e prisioneiros do leste ― ucranianos rebeldes, na maioria. Eu passava os dias tocando piano e violino, para não ver os abusos dos SS contra os prisioneiros. E tive a sorte de não ver muita coisa ali. Quando o comandante viajava (e eram muitas as vezes, levando sua corja de ordenanças), eu entrava nas ‘casas’ para perguntar se alguém sabia tocar algo. Eram muitos os prisioneiros com quem dividi momentos de alegres canções. Meus soldados riam e compartilhavam também. Mas nem todos. Algumas vezes, tive de explicar aos Coronéis (e, conseqüentemente, à Gestapo) por quê eu passava tantas horas do dia entre tanta gente ‘suja e condenada’. Meu cinismo e minha lábia me salvaram o posto e a vida muitas vezes. Entre o inverno de 1944 e o fim da guerra, em 45, eu estava na Itália, de onde recuávamos para os Alpes. O Terceiro Reich estava morrendo.” Sim! Isso aí na tua mão, querida... É mesmo a Cruz de Ferro.
♠♠♠♠♠ “No início, eu tinha orgulho de meu uniforme, e até mesmo da águia com a suástica, a ‘cruz encarnada’... Ninguém imaginava o alcance que tal simbolismo teria... Até eu ver alguns ‘companheiros de violino’ ocasionais tombarem à luz do dia ante o estampido das pistolas Lugger e Mauser... E eu nem podia demonstrar nada: nem ponderações, nem lamento, nem surpresa, nem dúvida. Eu me escondia covardemente atrás dos símbolos do Império alemão, da águia e da suástica. Quanta bravura!
♠♠♠♠♠ “Mas houve bravura... Fui indicado para receber a primeira Cruz de Ferro ao salvar alguns soldados (entre eles, um Coronel) de um 'Panzer' em chamas, apenas uns meses antes de Nuremberg. Da segunda vez, ganhei esta, por salvar soldados alemães feridos (e alguns oficiais) de um 'bunker' em chamas, já na Itália, no início de 45.
♠♠♠♠♠ “Quando a guerra acabou, os russos haviam chegado a Berlim antes dos outros. Nós, oficiais acima de tenente, havíamos fugido, para não sermos ‘julgados’ e condenados por termos apenas cumprido ordens. <Silêncio>.
♠♠♠♠♠ “Eu e mais alguns fugimos para o sul, para a Suíça. Mal me despedi de meus pais. Dali, fui para a Hungria, e para Grécia, de onde voltei para a Itália, pelo Mediterrâneo; e dali, para o Egito. Fugi disfarçado, fingindo ser um ex membro da Resistance Française. Fui para o Marrocos, e de lá para Angola. Desembarquei em Salvador, em 21 de setembro de 1945, num navio mercante. Ali, em Salvador, Brasil, conheci Gabriel. E não vi mais a neve. Nunca mais.” Até hoje, aqui, no Canadá.
♠♠♠♠♠ “A noite estava quente, e eu bebia água de côco. Na Suiça, eu havia me desfeito de algum ouro que guardara, trocando-o por dólares. Poderia viver bem, se não fosse perseguido. A população da Bahia parecia ser hospitaleira, mas desconfiada. Eu precisava ir para o interior. Num bar, ao suspirar por Helène, resmunguei em alemão, e percebi a burrada (eu deveria falar apenas em francês). As pessoas, muito escuras, naquele bar, pareciam não diferenciar. Mas um rapaz jovem e muito bem alinhado, vestido todo em branco, com um chapéu caído sobre a testa, se aproximou. Fiquei apreensivo. Eu tinha a pistola Mauser sob a camisa, mas não queria usá-la; ou teria que fugir novamente. Contudo, ele sentou-se a meu lado, sorriu e pediu mais água de côco, dizendo que pagaria. Desconfiei. E ele me perguntou se eu falava Romani. ‘Como?! Como ele sabia?!’ Suando muito, fiz que sim com a cabeça, já pensando em justificar sem escorregar. Ele me disse para ficar calmo. E perguntou de onde eu vinha. ‘Marseille’, eu respondi. Ele, então, me convidou para ir à sua casa. Mas o que ele queria de um marinheiro esfarrapado, assustado, que não demonstrava segurança no que dizia?! Ele sabia... Sim, ele sabia. A idéia de ter um fugitivo de guerra nas mãos, à sua vontade, o excitava tanto quanto a vontade de conhecê-lo, de perguntar-lhe sobre ‘como era lá, de verdade?’. Na casa dele, eu abri meu coração, contei tudo, tudo o que te conto agora. E ele simplesmente sorriu, e perguntou se eu desejava morrer. Eu disse que, apesar de não merecer, eu não lutaria contra o destino... Ele me olhava fascinado, à medida que eu narrava as situações, os combates, tudo.
♠♠♠♠♠ "Dias se passaram sem que eu jamais o visse à luz do sol. Mas todas as noites, ele vinha ao quartinho que cedera-me, sem aceitar pagamento (e sem perguntas sobre o ouro e os dólares), para ouvir mais. Havia um piano na sala. Lembro de ter tocado Mozart e Bach para ele; e o ‘Paso Doble’. Na penúltima noite, toquei um violino que ele trouxera de um baú. Acho que toquei ‘Ave Maria’ e ‘Jesus Alegria dos Homens’. E o ‘Hino Cigano’, para variar (e não parecer muito nacionalista. Nada de ‘Lili Marlene’ ou ‘Mein Guter Kamerad’). Nunca toquei com tanta vontade de agradar. Afinal, se ele me entregasse, eu enfrentaria os mesmos horrores de que nos acusavam de cometer. Era a minha vida.” He-he... Vida! Eu ainda tinha uma, apesar de fragmentada e incerta.” Não chore, doçura, ou vou chorar também...
♠♠♠♠♠ “Na noite de 27 de setembro 1945, na sala de estar de sua casa, Gabriel sentou-se a meu lado. Eu estava tenso. Ele se aproximou, pôs a mão em minha cabeça... Eu não conseguia mexer um dedo. Ele parecia certo, embora eu não entendesse... Tonto de calor, eu esmoreci. Quando dei por mim, ele estava com a boca em meu pescoço. Senti uma leve ardência, como de esfolado, mas suave. À medida que ele me sugava (!?), eu não sabia se dava risadas ou se xingava. Nada podia fazer. Estava num transe que nunca conhecera. Sentia frio. Muito frio, apesar do calor baiano. Quando ele me soltou, desabei no sofá.
♠♠♠♠♠ “Desmaiei e acordei rapidamente, e vi seu pulso sobre mim, aberto, sagrando.... Ele me mandava beber. Eu ignorei. Ele abriu minha boca, mas desfaleci.” Bem, ele conseguiu. Estou aqui, não é?! Deixa eu contar a dor após o beijo e o abraço... “Acordei com dores de estômago, de cabeça, e dores por tudo... Agonizei minutos que pareceram horas no chão, gemendo e grunhindo. Apaguei de novo.
♠♠♠♠♠ “Acordei definitivamente lúcido, mas sentindo uma ânsia tremenda por... Não acreditei. Não podia ser. Gabriel trouxera uma moça muito loira, meio apática, mas disposta (?!). Recusei! Sim, recusei tornar-me... Mas ela ofereceu seu braço... Gabriel me fez parar na hora certa, e me ensinou a ‘lamber’. Após, veio uma mulata linda. Foi a mesma coisa. Elas, deliberadamente, ofereciam-se. Era inacreditável!
♠♠♠♠♠ “Gabriel e eu vagamos pelo recôncavo, juntos, sempre vivendo bem com os ‘normais’. Ele me ensinava português, e eu tocava para ele. Éramos mais amigos e companheiros do que pai e filho. Controlamos o ‘jogo do bicho’, as brigas de navalha, e 'bebemos' juntos...” E eis-me aqui. Eu devo minha condenação a ele. E, te conhecendo, não a lamento.
♠♠♠♠♠ "Minha paranóia só cessou com a chegada dos anos 70. Só então pude ver a ‘Europa brasileira’, os Estados do sul, conhecer a Sociedade dos Atiradores Alemães. As pessoas esquecem. Ninguém, nem o mais perverso caçador judeu, suspeitaria de alguém que aparenta apenas 30 anos.” <Pausa>.
♠♠♠♠♠ Ah, Amanda! Doce Amanda! Eu devo a vida, e a não-vida, a ele. Os grilhões da gratidão são mais doces que o poder, e mais compensadores que as oportunidades que surgem das laias inferiores e conspiradoras. Eu te amo, e amo Gabriel. Vocês são minha família. Eu sei que tu não teve família. Sei da tua história. Sei que tu teve uma benfeitora cigana, que tinha muito carinho por ti. E sei que ela sobreviveu ao Gheto de Varsóvia, a Auschwitz, à fome e a indigência na Ucrânia. Ela te contou como era, não é? Ela sentiu na pele...
♠♠♠♠♠ Não chore, querida. Por isso teu olhar de decepção! Eu ganhei a Cruz de Ferro, duas vezes, mas eu a mereci! E mais do que Hitler! Porque salvei vidas. Criança! Cuidado com os julgamentos. A justiça é cega, e preconceituosa. Te mostrei o outro lado da moeda. Não existem exércitos bons ou maus. Só pessoas más que se reúnem, e arrastam outros consigo. E há pessoas igualmente más que pensam que são justas. Vi muitos rapazes inocentes, tirados de suas famílias, e obrigados a lutar e a morrer por um ideal que não lhes pertencia. Sendo mortos por ‘heróis’ ainda menos dignos de glória. A justiça é cega, e preconceituosa. Às vezes, o mundo confunde ‘sede de Justiça’ com ‘ponto de vista’.
♠♠♠♠♠ Tu tá confusa, eu sei. É muita informação. Pensa no que deve ter sido pra mim... Foi uma surpresa, eu sei... Só o que posso te oferecer é a minha gratidão, estendida a ti por nosso caro Gabriel. Quanto à Cruz, eu mexi no baú e dei por falta dela. Sim! Está aí! Imaginei isso: Tu sentiu minha falta, e resolveu “dar uma mexidinha nas minhas coisas”. Um dia, em um momento propício, te contaríamos essa história. Eu nunca fui nazista! Mas sempre fui alemão (ainda que criado na Áustria)!
♠♠♠♠♠ Sabe, imaginei que logo nos veríamos... Gostaria de ter te trazido um suco de uva. Sei que tu ama, mesmo não... Mas eu te trouxe isso, minha flor. Toma! Comprei esta caixinha numa barraca que já estava quase fechando. Abra! Ela toca Chopin. É um presente simples, barato, mas é o que tenho a oferecer! Além, é claro, de minha fidelidade e meu amor à nossa família. <Pausa>.
♠♠♠♠♠ Nos vemos depois, querida. ‘Pleased to meet you! Hope you guess my name.’
<Risos e silêncio>.
♠♠♠♠♠ Gute Nacht, Mein Liebe!
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