sábado, 5 de fevereiro de 2011

♥♥♥ Carta para Monique ♥♥♥

********************************************************************* Viena, 27 de setembro.
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♥♥♥♥♥ Amada idolatrada Monique
♥♥♥♥♥ Empenho novamente minhas esperanças na tentativa de vos encontrar. Com esta, contam-se já duas dezenas e mais uma o número de cartas remetidas à Paris, na sublime esperança de um resposta que prove que vos encontrei bem e saudável. Tenho procurado por vós, a despeito do silêncio aparente, mas sem sucesso, o que talvez concorra para uma desconfiança desfavorável para comigo e meus intuitos. Escrevo pela vigésima primeira vez, endereçando esta à mesma casa onde nos conhecemos, e de onde não recolhi, nestes últimos anos, senão mais do que uma ou outra correspondência de um educado e impaciente senhor, comunicando-me que ‘Monique não reside mais nesta casa; mudou-se para o interior; e seu paradeiro é incerto’.
♥♥♥♥♥ Monique, garanto com todas as minhas forças que moverei céus e terra para alcançar-vos, e reparar-vos de minha negligência. Talvez nossa última estada juntos não me tenha favorecido em vosso conceito, pois preferi embarcar para Viena para cuidar de meus negócios, deixando na França o que me era ― e sempre será ― mais caro: vossa companhia. Ainda não desisti, e se me bem conheceis, sabereis que nunca em minha vida, ou após, eu soube o que é desistir de uma empresa como esta. Portanto, estejais onde for, onde quer que seja, eu vos encontrarei. Ainda não retornei definitivamente a Paris por um justo motivo, e o que me prende em Viena contarei a seguir.
♥♥♥♥♥ Os dias passam velozes e o trabalho ajuda a não sucumbir à dor da saudade. Eu comprara a passagem numa nau que sairia do Elba rumo à Normandia, e que passaria perto da desembocadura do Senna, d’onde eu embarcaria noutra rumo à Paris. Contudo, estes dias têm sido atribulados. Um vizinho que me é muito caro, e mais que isso: um mestre que retém o meu mais profundo respeito, adoeceu. Moramos na mesma rua, e ele me regala com suas lições de piano. Nem de longe faço jus à sua sabedoria, apenas empenho algumas horas de alegria e profunda disciplina para apenas mimetizar um pouco do que esse ‘virtuosi’ me passa. Embora a maioria das pessoas ignorantes do lugar digam sempre que ‘perco meu tempo e meu dinheiro’ com ele, defendo que são as minhas horas mais agradáveis estas que dispenso ao seu jugo.
♥♥♥♥♥ Dia destes, eu chegara mais cedo que de costume, para tomar aulas, e vi sair de sua casa um médico, amigo seu de muitos anos. Ele recomendou ao amigo nestas palavras: ‘― Wolfgang, escuta o que eu digo: este ar gelado e esta umidade não fazem bem algum! Retira-te para o interior, onde o ar é mais ameno.’ ― Ao que o mestre respondeu: ‘― Doutor! Mal ganho para dar conforto a minha família... Minha Constanze concordaria... Mas antes há coisas que preciso fazer...’ ― Ao que o médico acatou sem entusiasmo. Ah, se eu tivesse intimidade para lhe oferecer estada na nossa fazenda em Sevilha! Se ele não fosse tão orgulhoso, e aceitasse o pagamento que lhe ofereço... Eu pagaria muito mais pelas aulas. Mas o mestre é honesto. Com certeza, o senhor Mozart não deixará Viena até que reconheçam sua maestria.
♥♥♥♥♥ Agora que está adoentado, não posso deixar Viena também. É algo mais forte. O respeito e a admiração que sinto por ele me prendem aqui até que ventos melhores soprem, e a favor. Ajudo no que posso a família, a despeito de seu orgulho. Deixei uma boa soma com um antigo empregado meu, que tem uma casa de câmbio na cidade, para despesas com alimentos, médicos e outras emergências que possam concorrer contra meu maestro. Com isso, aproveito também para empenhar forças em ampliar os meus negócios com as pessoas daqui e dos arredores.
♥♥♥♥♥ Ademais, penso apenas no momento eu que vos verei novamente, derramando alegria daquele sorriso radioso que me cativa; fitando-me com aqueles olhos puros, de doçura incomparável, como que me pedindo para ficar; envolvendo-me com as mais suaves e aveludadas madeixas ruivas que já iluminaram Paris. Na tão desejada hora, seremos novamente Tristan e Isolde, e veremos o luar sobre a Catedral de Saint-Michel, bem como fazíamos nos áureos dias de alegria, quando vos tornei minha esposa.
♥♥♥♥♥ As noites têm sido dolorosas, repletas de angústia e solidão, e isso não é o mal maior. Pois o que me mata ― se é que é possível ― é a ausência de informações sobre vosso paradeiro. Monique, por quê?! Por que vós desaparecestes de minha vida sem dar aviso, tão repentinamente, e tão sorrateiramente? Cheguei a pensar coisas horríveis, como achar que vos afastastes por ameaças ou cerco de caçadores... Contudo, membros locais garantem que não há caçadores atentos, ao menos algum que mereça atenção... E com base nisso, averigüei por meio de amigos confiáveis os arredores da cidade nestes dias, quando completa-se já sete longos meses que não vos vejo. Nada há que ameace nossa existência. Portanto, sei que o mal é outro. Só não sei do que se trata.
♥♥♥♥♥ Cara Monique, parecestes tão feliz na última vez em que estivemos juntos. Sorristes ao acaso, e nos aconchegamos como de costume tão avidamente! Seja lá o motivo que for, preciso sabê-lo, ou definharei. Não quero que vos exponhais desnecessariamente. Não desejo isso, nem acarretar riscos à vossa vida. Já sou culpado de pô-la em perigo, desde quando vos abracei. Mas quero zelar pelo que vos resta...
♥♥♥♥♥ Deixemos um pouco de lado as lamentações, pois desejo relatar sobre como têm sido meus últimos meses, e narrar o que omiti nas últimas cartas. Espero que, quando a lerdes, tereis também júbilo e graça, ao invés de somente impressões de dor e de lamentos.
♥♥♥♥♥ Quando parti, em março passado, deixando para trás vosso luminoso sorriso, foi para encarar noites e noites num barco fretado, comandado por um sócio meu, a quem beneficio em troca de favores como este... Ele não é um ‘membro’, nem está preso por ‘laços de sangue’. Apenas é um mercador que vê muitas vantagens financeiras em fazer negócios comigo. Às vezes penso que ele sabe sobre minha natureza, que talvez desconfie, não duvido... Mas, nesta maravilhosa era de luz e sabedoria científica, quando as superstições medievais caíram ante o avanço das moderníssimas novidades, as pessoas estão mais racionais, mais céticas, graças à luz de ideais como o iluminismo. Após a recente Revolução em ‘nosso’ País, tudo mudou muito: estamos mais seguros do que nunca estivemos. Bem, enfim, o fato é que Arnaud sabe que não gosto (não posso) ser acordado (nem incomodado) durante o dia. Todos os dez marinheiros, nesta embarcação de quarenta pés, entendem e respeitam a vontade excêntrica de seu mestre, sem ponderações (ou especulações...) sobre quaisquer ordens dadas. Procuro me alimentar sempre bem, antes da viagem. Se houver alguma emergência, temos muitos ratos no navio. Paramos sempre em portos menores e pulguentos, onde abastecemos com tudo o que precisamos. Isto torna possível que viajemos muito, e que enriqueçamos muito nossas boas economias.
♥♥♥♥♥ Em Viena, não é diferente. As pessoas são muito empenhadas no trabalho, ou melhor: em ganhar dinheiro, o que garante que as fofocas não ultrapassem a barreira da simples observação de certas futilidades. Quem vai identificar um predador vestido com seda e capa de veludo em um teatro, numa era em que todos tentam agradar e bajular os mais abastados, por piores ‘monstros’ que sejam? Estamos na Europa, o centro das frivolidades! Vivam as aparências! E o resto, seja o que Deus quiser...
♥♥♥♥♥ De tudo o que narrei em outras cartas, querida, negligenciei um fato. E não por falta de memória, mas por prudência. Narrá-lo-ei em seguida à elucidação deste ponto, que envolve a prudência.
♥♥♥♥♥ Querida, como vos ensinei outrora, sabeis que não devemos, nunca, por nossas vidas em perigo, revelando nossas essências aos ‘não-membros’. Estou citando isto porque considero importante, se bem que bem o sabeis. Em nossas correspondências, ― que poderiam, enfim, ser interceptadas por ‘desocupados’, ― nunca tratamos sobre certos assuntos; nunca mencionamos certas palavras; nunca citamos nomes (...); e nunca deixamos pistas claras sobre nossas intenções. Isto vós sabeis. Por isso é que evito contar tudo o que nos acontece aqui, tão distante, sabendo que a carta levará dias ou semanas, passando por mãos diversas, para chegar aí; e que, aí chegando, pode colocar-vos em risco. Mas, como o mensageiro é experiente, e como pretendo voltar assim que a saúde de meu amigo e mestre estiver recuperada, envio-vos esta na esperança de que, havendo retornado, vós podereis regalar-vos com minhas aventuras. Agora, deixando um pouco de lado a prudência, posto que não vos encontreis ainda em Paris, contar-vos-ei um fato deixado de lado anteriormente. Foi um encontro nada agradável, que tive com um ‘cachorrinho’.
♥♥♥♥♥ Minha amada, preparai vosso coração para esta peripécia. É de tirar o fôlego, para ser ‘metafórico’. Eu cheguei à Viena e aluguei quatro quartos numa pensão de três andares, vizinha a outros prédios residenciais. Como era de se esperar, estranharam um pouco o fato de eu sair apenas à noite, mas justifiquei-o: pele e olhos sensíveis.
♥♥♥♥♥ Conheci o maestro a andar pela rua de pedras na terceira noite. Eu havia retornado de um atendimento a um comerciante. Eu lhe fizera uma sangria para diminuir a febre ― É incrível, mas em pleno século dezoito há pessoas que ainda acreditam nisso! ― e assim ganhei a noite. Ao aproximar-me da entrada da pensão, vi o maestro à espera de sua senhora, que havia visitado o boticário em busca de um xarope. Conversamos, e logo simpatizei com ele. Ele falou de sua afeição pela música, e logo marcamos a primeira aula. Após uns dois meses, ao passearmos pelas ruas à noite, o senhor Wolfgang apresentou-me um conhecido, dono de umas terras fora da cidade. Insisti em visitá-las, pois negocio com cavalos, e gostaria de ver tudo o que o fazendeiro tinha. Expliquei minha ‘doença’, e marcamos uma noite para a visita.
♥♥♥♥♥ Na noite combinada, fui à fazenda, sem meu maestro. ‘Monsieur’ François e seus filhos, todos franceses, me receberam com entusiasmo; primeiramente, por saberem que eu moro em Paris, lugar onde viviam anteriormente; e depois, porque sabiam que nosso negócio seria ótimo para ambos. Um seu filho, Jean, o mais novo, era a pureza em pessoa: alegre, ligeiro e esperto; tinha dezesseis anos, e cuidava dos animais como seu pai; ou até melhor, pelo que este me disse. O outro, que se juntou a nós mais por mando do pai que por vontade própria, era um turbilhão de conflitos psicológicos: René tinha um sorriso sincero, um bom trato, e um magnífico coração; mas também algo que me chamou a atenção; e que me deixou em desespero...
♥♥♥♥♥ Eu senti no ar, no cheiro, na alma, e quis ir embora. O rapaz me encarava. Minha presença ali muito o incomodava. Definitivamente, ele não me queria por perto. Fizera várias ameaças veladas, compelindo-me a deixar sua família. Mas seu pai fez questão de minha presença. O rapaz, então, logo que pôde, deixou-nos e saiu para o campo. Eram nove horas da noite, e seu pai ficou zangado. Disse que, nestes últimos meses, o rapaz fazia isto seguidamente, retornando apenas na manhã seguinte.
♥♥♥♥♥ Pedi para cavalgar um corcel árabe, todo branco, e ‘Monsieur’ François me permitiu. Saí campo afora com o animal, já desejando comprá-lo com mais uns dez iguais, quando cheguei a um velho poço no meio de uma aglomeração de árvores a leste da propriedade. Eu havia cavalgado por uma hora. Disseram-me para ‘não ir longe’, que aquela região ‘era assolada por monstros’. Eu ri, pensando que algum membro havia comprometido a ‘Máscara’ por ali também. Diziam que animais apareciam destroçados e que o povo temia andar à noite nos arredores da fazenda. A claridade da lua, para mim, lembrava um dia de verão, como aqueles que eu um dia vira na praia. Então, um rosnado trouxe à minha alma a compreensão do que eu ouvira: não era um membro... Ali, naquele local, havia algo que eu nunca gostaria de encontrar.
♥♥♥♥♥ Quando dei meia-volta, e pretendia galopar para junto dos demais, o cavalo entrou em desespero. Caí, e ao levantar, o animal saiu em disparada rumo à sede. Na sua anca direita, quatro cortes enormes reluziam ao luar, como de uma garra, de algo muito grande. Olhei para o lado da mata, e vi a maior coisa que já tinha visto. Um lobo gigantesco, com olhos vermelhos e dentes à mostra, rosnava para mim. O que salvou minha vida não foi nem minha rapidez, que, afinal, é páreo para ‘um destes’; nem foi o fato de eu haver alcançado o cavalo e montado; enfim, não foi a piedade do monstro... Foi, sim, o fato de os homens do fazendeiro chegarem com pistolas e arcabuzes, todos carregados com bagas de prata. A criatura nem os esperou. Fugiu mata adentro, deixando livre o pobre cavalo (Afinal, eu seria mais rápido que o animal, e talvez me servisse ainda de outro recurso, não sei...). O fato é que sobrevivi a um lobisomem. E o que mais me preocupou: não me disseram, mas possivelmente, aquele seria o filho mais velho do pobre François.
♥♥♥♥♥ Apesar das dúvidas do meu novo sócio, e de meus receios, retornei mais vezes. Fiz questão de pagar pelo cavalo ferido, que acabou sacrificado pelos homens por medo de possíveis reações adversas. E comprei mais vinte iguais.
♥♥♥♥♥ E esta foi minha história, caríssima Monique. Poucos como nós sobrevivem a um encontro com um lobisomem. Os outros sim, afinal, eles não atacam pessoas comuns. Sabei, poucas vezes senti tanto medo. Eles nos odeiam. Eles nos destruiriam a todos se pudessem. Sinto apenas pelo velho pai, que sofrerá ao ver o filho sumir, a cada lua cheia, sem saber se este retornará a salvo, com muitas cabeças de gado e cavalos a menos, ou se o encontrará nu, crivado de bagas de prata, no meio da mata. É triste.
♥♥♥♥♥ Deixo aqui meu relato de minhas aventuras, no qual dou fé de dois acontecimentos distintos: meu encontro com o mestre, e meu encontro com a fera. Ademais, cuidarei de retornar logo à nossa amada Paris, para vos dar conta disso tudo pessoalmente; isso, se eu vos encontrar... Parto assim que puder, e, se vento houver, se a sorte me permitir, terei com vós logo. E para sempre.
♥♥♥♥♥ Amantíssima Monique, rezo agora para que vos encontre bem, saudável e segura. Nestes tempos de incredulidade, apenas quem convive com o inacreditável crê em coisas sobrenaturais. O mundo mudou, e o ceticismo toma os corações da população, que cada vez mais visa o lucro e o conforto, deixando de lado as crenças no além; mas também a pureza dos corações. Isto, para nós, é tanto uma bênção, quanto uma maldição. O que está destruindo a humanidade, está nos fortalecendo. Mas, quando toda ela estiver acabada, o que será de nós?
♥♥♥♥♥ Abraços, beijos, e minha sincera veneração a vós, eternamente, senhora de minh’alma, alento de meu desespero, e (como dizia Gregório, meu mestre lá em Recife, há uns cem anos), ‘anjo dos meus altares’.
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*********************************************************** Viena, 27 de setembro de 1791.
*************************************** De vosso sempre fiel Gabriel Evangelista Diniz Duarte
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*********************************** (Segunda-feira, 31 de janeiro de 2011. 22:35.)

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