“Seja bem vindo, mestre! Entre! Minha casa, tua
casa. As notícias correm rápido... Creio que a visita tenha algo a ver com o
rebuliço de ontem, não tem? (...) Imaginei. Tive certeza de que tu me
procuraria depois desses fatos tão desagradáveis... Eu não tive escolha. Fiz o
que precisava ser feito.
“Me perdoa, mestre, mas não vou te chamar de
príncipe. Tu sabe. Eu te respeito e te admiro, mas não participo da ‘família’.
Sou um anarquista, lembra?! (...) Pois então! Sente-se e vamos conversar um
pouco, quero te contar o que houve nesse ‘teu domínio’. E preciso contar hoje!
(...) Sim, eu vou! As coisas já estão arrumadas e me mando ainda amanhã. Tu
sabe... Siegfried Keller é um aventureiro, um eterno andarilho! Preciso de
novos ares noturnos para digerir o que aconteceu ontem. Aceita uma taça de um
tinto? As bolsas são novinhas, compradas hoje mesmo! (...) Tá bom, vamos ao que
interessa. Vou começar do início, pra não haver mal entendidos...
“O circo. (...) Eles estão na cidade desde março. (...)
Provavelmente toda a trupe já foi embora, abandonou tudo, até a lona. Havia uma
menina, um rapaz, e o pai de ambos. E um amigo meu, policial civil aqui no
município. O que vou contar me afetou bastante, ainda não digeri isso, não
consigo conceber.
“Tudo começou ontem, quando fui à delegacia buscar
o Moacyr pra uma sessão de jogatina de sexta-feira. Ele estava de plantão, mas
sempre dava uma escapada. O bar é perto, e o delegado, um sujeito que tinha
cara de bom camarada, disse que não se importava e que o chamaria se precisasse.
O bar fica a apenas uma quadra. Quando estávamos saindo, uma moça jovem e
bonita, e um guri de uns doze anos, parecendo estarem com medo, entraram na
delegacia. Eu a reconheci logo. Ela era uma das trapezistas do circo, chamada
Clara, de apenas dezesseis anos. Ao sair, fiquei um pouco na porta, enrolando,
e disse a Moacyr que precisava lembrar de algo. Foi uma desculpa pra ficar
escutando, eu estava curioso, pois os jovens pareciam aterrorizados. Minha
audição não me deixaria na mão.
“A menina implorava, pedia soluçando para que o
delegado soltasse o irmão mais velho, um tal de Arcélio. Ao que parece, pelo
que entendi da conversa, e pelo que arranquei de Moacyr depois, o tal Arcélio
teria tentado comprar um remédio de uso veterinário para curar a bicheira de um
elefante, e o dono da loja teria botado eles para fora. Pelo que ouvi da conversa
da menina, seu irmão não agrediu ninguém, e sim o dono da espelunca os teria
destratado. Por serem ‘gente de circo’! (...) Sim, ela estava junto. E parece
que a desculpa do vendedor era essa mesma: ele não atendia ‘esse tipo de
gente’. Seu irmão teria ficado ofendido e, em defesa da honra dos dois mais
jovens, teria respondido ao homem de forma sarcástica. O sujeito então chamou a
polícia e aí já viu... Pessoas de fora, pobres, contra um ‘nobre cidadão
morador da cidade’, ativista da TFP... Mas quando pensei em intervir de alguma
forma, escutei do delegado que ele soltaria o rapaz. Disse que a moça esperasse
um pouco. Satisfeito, eu disse a Moacyr para irmos ao bar jogar poker. Foi um
infeliz engano. Eram nove horas quando saímos, e ficamos jogando por umas três
horas. Nesse tempo, muita desgraça aconteceu.
“Por uma dessas casuísticas inexplicáveis do
destino, na nossa roda de jogo estava um jornalista francês, que disse em mau português
que estava fazendo uma matéria sobre o futebol amador na periferia do Brasil, e
que iria pernoitar na cidade. Esse jornalista, Jean Pierre, não me convenceu muito
com essa história de ‘matéria sobre futebol’...
“Enquanto estávamos distraídos na roda de jogo, outro
policial civil, Orestes, chegou ao local e chamou Moacyr para ir à delegacia,
dizendo ser uma emergência. Sem ser convidado, fui logo atrás. E o jornalista também.
Quando chegamos, havia muitas pessoas. Lá estavam o delegado Pompeu Malachias, com
alguns policiais armados, a menina Clara com seu irmão, Arcélio e o pai dos
três, que reconheci como Frederico, o mágico da trupe. Parece que o rapaz foi
bastante agredido, estava machucado e com hematomas. Mas o que me chamou mais a
atenção foi o estado da menina. Ela estava em um estado miserável, com os olhos
vermelhos e encharcados, vergões por toda a pele que somente eu conseguia
ver... O menino chorava agarrado a ela. O irmão mais velho, Arcélio, estava
fora de si e gritava com o delegado. O pai dos jovens também estava exaltado. E
o que ouvi disso tudo quase me deixou em frenesi de sangue. Naquela hora que
saímos para jogar, o delegado levou a menina para uma cela e propôs soltar seu
irmão se ela cedesse às sua vontade. E pelo jeito, ela concordou. O irmão teria
visto, ou ouvido algo, e então teria começado a gritar. O pai teria chegado na
hora. Parece que ele viria com a filha, mas acabou se atrasando por conta de um
incidente de trânsito, sei lá, bateu a Kombi dele na DKW do tabelião, ou algo
assim, e os filhos vieram na frente. O delegado estava furioso pelas acusações
do Arcélio, e certamente teria colocado todos em uma cela no porão, se não
tivesse visto o jornalista Jean Pierre, que fora recebido até pelo prefeito
dois dias antes. Sendo o cidadão jornalista e francês, era celebridade, não
pegaria bem pra polícia local usar a autoridade de forma descuidada na frente
de repórteres estrangeiros. O delegado, então, para nossa grande surpresa,
liberou a família. Disse para irem para casa. Só que algo não me cheirava bem.
“Chamei o tal Jean a um canto e lhe disse o que eu
achava que aconteceria, e que precisaria da ajuda dele para tirar essa família
da cidade em segurança. Ele concordou e fomos juntos para o circo, sempre
acompanhando os quatro integrantes da família a uma distância segura. Eles
choravam de ódio e indignação, e os dois homens mais velhos juravam vingança.
“Já perto da grande lona, eu os alcancei e pedi um
minuto. Expliquei para eles que corriam perigo, e que precisavam ir embora
desse Estado imediatamente. Frederico disse que mandaria sua família para
longe, mas que ele ficaria para denunciar o delegado. Eu lhe expliquei que
Pompeu Malachias era intocável, que os meios legais não ajudariam. E prometi,
no calor da raiva, que eu mesmo o faria pagar. Nisso, escutei vozes atrás de
mim e os olhos das pessoas daquela família se arregalaram. As vozes eram de
Moacyr e Orestes, e perguntavam o que eu estava fazendo ali. Orestes tinha já o
revólver na mão, e disse para Moacyr que eu e o jornalista teríamos que ‘sumir
também’. Sim, ele foi enviado pelo delegado para um ‘serviço discreto’, matar
Arcélio e Frederico, e talvez coagir Clara e Ricardinho a não falarem nada e
negarem os acontecimentos da noite. Ou talvez simplesmente matá-los a todos.
Mas o certo é que quando Orestes viu o jornalista e eu no local, todos nos
tornamos alvo. Não havia como voltarem atrás, entende? Nem eu teria outra
alternativa. Precisei matar Orestes rapidamente, embora eu desejasse saborear o
terror em seus olhos. Eu o conhecia e não gostava nada dele. Corrupto,
assassino, cafetão, brigão... Vivia constantemente embriagado. Moacyr ficou muito
confuso. Infelizmente, precisei cuidar dele também. Foi triste, era um bom
companheiro de jogo. E talvez não soubesse da ordem do delegado a Orestes. Mas ele
acabou sacando a arma, então... Tentei fazer com que fosse rápido e indolor.
Frederico pareceu se acalmar, Arcélio também. A menina e o menino entraram em
choque. O jornalista estava apavorado e mudo, então menti que eu fazia parte do
que sobrou do MR8, e isso pareceu aliviá-lo um pouco. Ele acreditou no blefe. Pedi
que não divulgasse minha descrição nem meu nome para ninguém, e ele sorriu e
disse que na verdade viera ao Brasil para investigar o caso de um suposto
suicídio mal explicado de um jornalista, um tal de Herzog, ocorrido alguns
meses atrás. Nem mesmo eu prestava atenção nessas coisas, e gente lá de longe
vinha até aqui investigar isso. Dei sumiço nos corpos dos policiais usando a
própria viatura Veraneio que Orestes dirigia. Quando achassem seus corpos,
muitas pessoas inocentes talvez pagassem pela minha ousadia. Por isso eu os
dissolvi com ácido e depois queimei o que sobrou num forno de forja bem longe
daqui. O carro mandei pra um desmanche de um conhecido, e ninguém achará nem um
parafuso dele. Frederico e seus filhos estão agora em segurança, em outro Estado. Eu lhes emprestei dinheiro. (...) Não vou aceitar devolução. Pessoas de
circo são minha família, lembra, Gabriel? (...) E isso foi tudo que aconteceu.”
Bem, meu caro mestre, como eu disse, amanhã estarei de partida. Sem
querer te apressar, preciso sair agora. Eu também tenho uma visitinha pra fazer,
e precisa ser hoje. Uma outra conta para cobrar antes da viagem. Uma conta que
vai ser reconfortante cobrar. O delegado Pompeu.