domingo, 21 de julho de 2019

Crônicas de Siegfried



>>>> Crack! É o som que escuto sob a sola das velha botas, enquanto ando por essa rua cinzenta nesta noite deserta. Silêncio! Tudo o que ouço. Exceto pelo estalo: crack! das folhas secas caídas das árvores centenárias. "Esta parte de Salvador é calma, sombria e até mesmo agradável", diria Gabriel. "Lugar triste", diria Amanda. Nossa, não os vejo há tempos! Faz frio. Mas não consigo, nem me esforçando, sentir nada além do toque do vento em minha pele. Do meu lado direito, um muro velho, cedendo, cheio de rachaduras. À esquerda, árvores, e uma rua de pedras irregulares... Nem viva alma! Entretanto, congelo ao ouvir uma voz me chamando: "Siegfried"... Olho para todos os lados, e nada... "Siegfried!", escuto novamente. Percebo então que esta voz, baixa e longa, vem de minha própria mente. E ela fala: "Tun dies... Streichhölzer und Benzinkanister!". Imediatamente paro e olho ao redor novamente... Noite, escuridão, nada mais! E, com um embrulho no estômago atrofiado, reconheço a voz - Leutnant Kreter, o oficial fuzilado por ajudar sua namorada ucraniana a fugir para a Suíça. Isto está tão vivo em minha memória. Sim, 25 de março de 1944. Mal fazem trinta anos. Pronto, cheguei em minha humilde morada. A casinha é jeitosa. Por fora, parece totalmente abandonada, exceto pelas cortinas novas aparecendo por trás da basculante de vidro trabalhado... Não é bom que pensem que está abandonada. Alguém pode ter a infeliz idéia de querer morar ali. Seria um choque me encontrar em meu confortável esquife, e mais ainda pra mim - se isso ocorrer durante o dia! Agora estou na salinha aconchegante, simples, e ligo a tv. A lâmpada incandescente amarela, pendida do velho e sujo fio, irrita minha visão, até que me acostumo. Na TV, as mesmas mentiras de sempre, atrás do vidro convexo, alimentado por válvulas parecidas com esta lâmpada. Estou alimentado. Ela saiu satisfeita, agradeceu e tudo. Mas seu beijo nem se compara ao de Amanda. Nem em parte... Bem, vou dormir agora. Ontem houve tiros e correria - a polícia perseguiu alguns comunistas aqui por perto - vi seu Fusquinha vascaíno correndo pela rua, atrás de um Corcel verde-claro velho e maltratado. Hoje, felizmente, paz! Já já vai amanhecer. Vou dormir e espero não sonhar... Porque se sonhar, será com ela... Sim! Eu a estou vendo diante de mim... "Gute Nacht, meine Liebe!"

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