domingo, 21 de julho de 2019

Azaléia Invernal

“Aquilo foi como se tivesse sido um sonho, nada mais. E não faz tanto tempo assim, para parecer apenas sonho. Todos me olhavam embasbacados enquanto eu rodopiava naquela argola a cinco metros do chão. O silêncio e os suspiros, de vez em quando, eram abafados pelos aplausos. Crianças sorriam admiradas, idosos pareciam apavorados, e moças desviavam o rosto para não olhar... A fanfarra alegre do circo dava lugar a uma música de suspense quando eu subia no aparelho. E os gritos das pessoas sem ar me deliciavam quando eu fingia cair e ficava pendurada pelos pés, balançando em círculos. Cavalheiros levantavam-se, prontos a me socorrer, porém, eu não caía. Continuava lá, voando, sorridente, brilhando entre lantejoulas e paetês.”
(Argh!!!) Ai! Deixa eu continuar, Beto... “Em todos esses anos, nunca havia sofrido um acidente. A pior coisa que me acontecera fora rasgar a meia-calça durante uma subida. E só.” Ah, Beto, sinto saudades imensas daquele circo! Mesmo tendo que passar meus dias dentro de uma caixa fechada, incapaz, impotente, à mercê do que quer que fizessem comigo entre a alvorada e o ocaso. (Ffff!) Bem... Não era assim tão ruim, pois o dono do circo fazia tudo o que eu pedia, e você já imagina porquê. Mesmo assim, era arriscado. “Ninguém da trupe sabia sobre mim, mas havia uma amiga e colega que desconfiava de algo, e mesmo assim ela sempre me ajudava e protegia. Todos respeitavam meu pedido para não ser incomodada durante o dia, mas vai saber o que poderia motivar uma pessoa a quebrar esse acordo... Afinal, para eles eu era tão humana quanto qualquer um.” (Argh!!!) Por favor, para com isso, Beto!!! (Ffff!)
“Numa certa vez, em julho de 1976, montáramos a lona em uma área baldia de uma cidade do interior do Paraná chamada Marialva, nos arredores de Maringá. Para o dono do circo (e para todos nós), era uma oportunidade! Mas o que eu não sabia, é que aquele lugar era domínio de lupinos. Sim, teu povo dominava o lugar! Mas como eu poderia saber? Eu mal sabia que vocês existiam! Logo que chegamos, o senhor Hiroshi e seu gerente, Giácomo, contrataram trabalhadores locais para montar as estruturas e levantar a lona, dentre outros serviços. Em geral, eram rapazes divertidos e até um pouco abusados, pois ficavam dizendo gracinhas para Sônia, minha amiga. Ela era contorcionista e também a noiva e a partner do atirador de facas. Como a maior parte do serviço era feita durante o dia, só fui vista por eles em seu terceiro dia de trabalho, pela noite, pois ficaram até mais tarde para acabar uns consertos. Seria a noite de estréia. De início falaram as mesmas gracinhas que haviam dito a Sônia, mas ignorei, assim me deixariam em paz como a deixaram também. Entretanto, entre eles, havia um que me chamou a atenção. Não apenas por instinto, intuição ou por ele ter um cheiro diferente. Mas pela forma estranha com que me olhava. Seu nome, ao que me lembro, era Radamés. Em seu olhar havia algo, como se ele soubesse e estivesse vendo o pior exemplar da minha espécie... Naquela hora, sem saber por que, eu senti muito medo. Mas era a noite de estreia, e eu precisava estar bem, pois me apresentaria no final, antes do grande trapezista russo.
“Madame Madalena era quem negociava com eles, e por volta das dezenove horas, quando passávamos pelo picadeiro rumo aos treilers-camarim, ela nos apresentou, convidando-os a assistir ao espetáculo com suas famílias.
“— Amigos, esta é Sônia. Ela é contorcionista e também é a noiva de Vanderlei, o atirador de facas, além de ser sua partner. Esta é Amanda, acrobata e trapezista, e às vezes ela ajuda o mágico chinês,  também como partner.”
Calma, calma!, por favor, deixa eu continuar! “Cumprimentamos os oito moços com um sorriso tímido e um abano de mão. Eles pareceram satisfeitos com o convite para voltar, mas um deles apenas me encarava com ferocidade. Não consegui prestar atenção em todos os nomes ditos por Madame Madá, mas o dele eu não esqueci. Radamés. O que poderia ter de tão assustador naquele moleque de não mais que vinte anos? Bem, isso eu descobriria mais tarde, naquela mesma noite.
“Fomos para o camarim nos preparar para as apresentações. Não comentei nada com Sônia, para não deixa-la ainda mais desconfiada. O espetáculo começara enquanto nos vestíamos e maquiávamos, e do treiler podia-se ouvir tudo o que ocorria debaixo da lona. Os palhaços interagindo com o público, o elefante fazendo graça, outro palhaço brincando com um macaco, o domador de leões (que era o próprio Hiroshi), os equilibristas e os cavalos domados. Logo que Sônia saiu para fazer seu número de contorcionismo, um menino, que fora adotado pelo mágico, entrou no meu treiler, tirou o pirulito da boca e me disse:
“— Amanda, tem quatro moços aí querendo falar contigo... Eles estão entre o caminhão cozinha e a carreta da lona, lá no fundo.
“Meu instinto gritava que algo estaria errado e que seria perigoso. Mas eu também não poderia correr o risco de colocar minha única família em perigo. Vestida para a apresentação, fui até o local. Apesar do vento e do frio, não coloquei nenhum tipo de cobertura, como seria natural a uma humana fazer. A roupa era uma collant de nylon em três cores, imitando um maiô cavado preto, com braços e pernas cor de pele, e babados vermelhos nas junções. Me arrependi de não colocar uma manta por cima para poder fingir estar sentido frio de uma forma mais convincente.
“Cheguei ao local mas não vi ninguém. Olhei para todos os lados e nada vi, mas estava sentindo que era observada. O primeiro deles surgiu de cima da carreta. Voltei-me para ele enquanto outro se movimentava bem atrás de mim. Outros dois surgiram ao mesmo tempo de direções opostas, cercando-me. Cruzei os braços demonstrando um misto de medo e frio e suspirei, mas eles não se convenceram. A primeira coisa que o maior deles questionou foi:
“— O que faz aqui?
“— O que querem nesta cidade? — Perguntou o que estava atrás de mim.
“— Quantos são? — Indagou um terceiro.
“— Sou apenas eu. E nós fazemos isto! — Disse eu, apontando para o circo.
“Um quarto que ainda não havia falado disse:
“— Quer que a gente acredite que tu é a única parasita entre tantos?
“— Sim, a única! — Respondi. — Todos os demais não sabem.
Dois deles riem.
“— Falo sério. Voltem durante o dia e vejam vocês mesmos! Serei a única que não estará entre eles.
“— Eles não sabem mesmo?
“— Não! Eu juro! — Tentei ser convincente, mas isso seria fácil para eles confirmarem.
“— Qual teu objetivo na nossa terra? — Perguntou o maior.
“O menino que me dera o recado surge correndo e me chamando, e os quatro sujeitos se entreolham, como se não soubessem o que fazer.
“— Amanda! Amanda! É a tua vez, vai pro picadeiro!
“Olhei para os quatro bem nos olhos e pedi:
 Podemos conversar após o espetáculo? Eles precisam de mim agora...
“Eles se entreolharam em dúvida, e meio a contragosto fizeram que ‘sim’ com a cabeça.
“No picadeiro, os aplausos e assovios ensurdeciam. Eu fazia mesuras para a plateia enquanto os assistentes testavam meu equipamento. Naquele tempo nem rede havia, quanto mais cabos de segurança, como os de hoje. Eu não poderia errar, ou eu poderia revelar minha natureza diante de um enorme público. Afinal, cair de cinco metros sobre um chão duro e sobreviver seria, no mínimo, um milagre.
“Enquanto o arco metálico subia, puxado por assistentes, eu me elevava acima do barulho da plateia. Por um momento, breve mas marcante, vi os rapazes que me chamaram lá fora misturados à plateia. Um em cada canto. Como se temessem que eu fugisse. Pude olhar cada um deles bem dentro dos olhos por frações de um segundo, e eles souberam que eu os estava vendo. Por um momento temi, e percebi que não estava mais sorrindo. Imediatamente abri um lindo sorriso e mandei beijos para a plateia, antes que percebessem algo. O assistente fez com que o arco girasse em círculos sobre o picadeiro, e tudo o que eu tinha que fazer era me equilibrar e fazer posições desafiadoras diante da gravidade. Eu girava e pensava: ‘Ai, o que será que eles querem comigo? Serão caçadores de bruxas? Fanáticos religiosos puritanos?’ Eu não sabia. Na época eu ainda não reconhecia vocês pelo cheiro. E o cheiro deles era forte e marcante, mas desconhecido. Foi então que vi o moço chamado Radamés conversando com um deles mais perto da entrada. Radamés cochichou algo, apontou para mim e saiu. O outro rapaz ficou na mesma postura, como se montasse guarda.
“‘Bom’, pensei, ‘já que esta pode ser minha última apresentação, então, vai ser a melhor!’ Então eu fiz a melhor performance que já fizera na vida. Voei, volitei sobre o público, fazendo caras e bocas, fazendo coisas que aterrorizavam e deliciavam, que assustavam e comoviam as pessoas. Até mesmo um dos lupinos de guarda fez uma careta quando achou que eu iria cair e me esborrachar no chão, e respirou aliviado quando me viu presa apenas pelos pés ao arco que girava rápido demais.
“O assistente diminuiu a rotação até o aro metálico parar e em seguida o baixou, fazendo-me tocar o solo. Os aplausos eram ensurdecedores, e as pessoas estavam de pé. Demorei muito agradecendo, não por medo do que viria depois, mas por gratidão verdadeira. Até que, muito tempo depois, todos silenciaram para que fosse anunciada a última atração. E foi nesse momento que corri até meu treiler e dessa vez peguei uma manta cinza para me cobrir. Achei que os encontraria no mesmo local mas, ao abrir a porta, estavam todos ali, e também o Radamés.
“Convidei-os a entrar, afinal, estava frio de verdade e eles não eram tão imunes ao clima quanto eu — pelo menos era o que eu pensava. Conversamos durante uma hora mais ou menos, e acho que consegui pelo menos convencê-los de que eu era a única imortal da trupe. E que todos os demais eram inocentes e nada sabiam sobre mim. Tive que revelar como eu os enganava e como eu me livrava do trabalho e das rotinas diurnas. Tive que revelar como eu me alimentava: de quem, onde e quando. E essa foi a chave para eles terem me deixado em paz depois disso. Eles me revelaram o que eram e o que faziam, o que me fez experimentar um pânico nunca antes imaginado. Metade deles queria minha destruição, mas três pelo menos acharam isso desnecessário. Acharam que poderiam me usar para algo realmente bizarro: ensiná-los a destruir minha própria espécie. Bom, naquele momento, naquela situação, que outra escolha eu tinha?”
Pode ter sido alguma propensão para a ordem e a paz, ou a promessa que fiz de ajudá-los, ou algum outro motivo obscuro que não percebi... Ou pode ter sido minha performance, guiada por meu carisma e meu olhar hipnótico que os impediu de cumprir a missão da espécie. Não sei. Tudo o que lembro é que Radamés ficou muito mais presente na minha não-vida a partir daquele dia. E acho que é por isso que tu tá fazendo isso, não é, Beto? Tu acha que eu fiz algo com ele, não acha? Nós tivemos muitos encontros após aqueles dias, e éramos vistos juntos mais do que gostaríamos. Olha para meus pulsos, Beto... Isso é realmente necessário? Estão marcados e sinto dor. Estão em carne-viva, de certo modo... (Argh!!!...) (...) Poderia parar de me bater no rosto, por favor? (Sputl!...) Acho que alguns dentes já estão soltos... E tua mão tá coberta com meu sangue... (Argh!!!...) De novo... Ok, ok, não é meu esse sangue, eu roubei. Mas saiu da minha pele. Espera! Espera... (Splut!) Eu juro, eu não sei onde está o Radamés! Eu juro! Eu não o vejo desde 1982, quando ele me apresentou seu filho de três anos. Eu falei a verdade. Eu o conheci no circo, e andamos juntos por um tempo. Mas eu não o vejo há quase quarenta anos! (...) Hã? Quê? (...) Ah! Agora faz sentido! Agora entendo... Tu é aquele menino... Tu é filho dele! É mesmo necessário fazer isso comigo? Já falei que não sei onde ele possa estar... Por que não acredita em mim, Beto?!

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