domingo, 21 de julho de 2019

Arrogância e Confiança - Crônicas de Siegfried Keller IV


É realmente aterrador!
Reconheço que tu, meu mestre e irmão, sempre me alertou sobre isso. Incansavelmente, diga-se de passagem! Sim, foram muitas as advertências, os conselhos... Eu sou testemunha disso!
Tu fica isento de qualquer responsabilidade. Tu já passou por isso alguma vez ou outra também, não?!
Pois é...
Aconteceu, mestre. Aconteceu.
Não posso desfazer. Não posso voltar no tempo e tentar fazer diferente... Não posso...
A culpa é minha, toda minha, somente minha. A autoconfiança será a minha destruição um dia. O excesso dela, dessa autoconfiança que me torna arrogante e estúpido... Isso me destruirá num âmbito bem mais físico do que está me destruindo espiritualmente.
É. Eu deslizei feio. E causei uma perda irrecuperável. Tudo aquilo que tu me ensinou, tudo o que construiu em mim... Parece que joguei tudo fora. De novo. Da primeira vez, eu busquei minha própria punição. Mas tive sorte, e ajuda. Muita ajuda.
Só que desta vez, diferentemente das três vezes anteriores, neste longo século de existência, eu não podia ter feito. Não podia ter deslizado. Não com toda a experiência, com toda a prática... Não podia! Não podia...
Tirar uma vida... E assim...
Sei que já faz algumas noites que aconteceu, mas sinto isso aqui e agora. Mais forte do que esperaria. Menos doloroso do que eu merecia... Mestre! Esse não sou eu. Esse...
Sim, sim! Entendo. Posso compreender, mas...
Não! Não sou merecedor. Deixa que eu purgue isso. Eu preciso. Senão vou enlouquecer. Vou explodir.
Lembra quando contei como ganhei aquelas medalhas de coragem? Quando contei as coisas que aconteceram lá? Falei sobre a gratidão e o alívio nos rostos daqueles homens feridos que puxei para fora daquele Panzer em chamas? E sobre as vidas que ajudei a preservar naquele bunker na Itália? Pessoas que voltaram para casa graças a algo que fiz? A primeira Cruz de Ferro. A Segunda Cruz de Ferro... Símbolos de algo que fiz – que nem de longe valem o ato, mas – que me lembram aqueles que ajudei...
Tirar vidas... Assim! Isso parece que anula tudo. Parece que me tira o direito de guardar as medalhas, de me lembrar daqueles homens que ajudei.
Matei pessoas sim, na Guerra, e até na minha própria guerra pessoal. Isso nunca foi problema. Mas o que me destrói é isso. É matar assim, desse jeito...
Hã?! Não sei... Não sei se...
Ok, vou dizer como foi. Embora isso vá doer.
Eu gostava dela. Gostava de verdade. Me agradava de fato estar com ela, ouvir a conversa dela... A solidão tem seu preço. Um alto preço, só não tão alto quanto envolver inocentes nisso. Eu pretendia... Talvez! Um dia... Quem sabe... Ela tinha qualidades. Ela era especial. Quem sabe?! Eu poderia... Hm...
Estávamos passeando na beira do mar. Ela estava chateada com algo ou alguém, não sei. Ela insistiu para eu levá-la para casa. Para a minha casa! No caminho, paramos num mercado. Ela levou uma bebida pra gente. Hnf! Tsc! O vestido esvoaçante, um pouco sujo de areia, mesmo assim fazendo-a parecer um anjo... O fato é que me deixei levar. Como tantos fazem. Como todos fazem. Um dia. Justo ela! Justo ela...
No meu refúgio, na penumbra, ela me fitou. Sentei-me do lado dela. E a beijei. Seu pescoço imensuravelmente quente, pulsante, latejante... O aroma me chamando... a sede.
A sede.
Autoconfiança.
Um imbecil que ama, mas que esquece dois pequenos detalhes. Um, ela está viva e pulsante. Dois, alimentar-se! Ahnf!
... Teria feito toda a diferença...
Quando dei por mim, acordei de um sonho doce. Muito doce. Ela jazia fria em meus braços. Branca. Muito branca e fria. Vazia. Sem vida. Sem luz, sem nada...
Imagina meu ser despedaçado. Minha consciência inconsciente do que fizera... Não sei como tive tontura, se não tenho nervos; nem como tive enjoo, se não tenho estômago; mas o sangue em meus olhos me lembrou que sim!, que eu posso sofrer! E que eu vou.
O corpo ainda está lá, onde o deixei. Não tive coragem de fazer o que outro qualquer de nós faz nessa situação. E é por isso que preciso da tua ajuda, mestre. Faz isso por mim?

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