domingo, 21 de julho de 2019

Flores Laceradas

“Seja bem vindo, mestre! Entre! Minha casa, tua casa. As notícias correm rápido... Creio que a visita tenha algo a ver com o rebuliço de ontem, não tem? (...) Imaginei. Tive certeza de que tu me procuraria depois desses fatos tão desagradáveis... Eu não tive escolha. Fiz o que precisava ser feito.
“Me perdoa, mestre, mas não vou te chamar de príncipe. Tu sabe. Eu te respeito e te admiro, mas não participo da ‘família’. Sou um anarquista, lembra?! (...) Pois então! Sente-se e vamos conversar um pouco, quero te contar o que houve nesse ‘teu domínio’. E preciso contar hoje! (...) Sim, eu vou! As coisas já estão arrumadas e me mando ainda amanhã. Tu sabe... Siegfried Keller é um aventureiro, um eterno andarilho! Preciso de novos ares noturnos para digerir o que aconteceu ontem. Aceita uma taça de um tinto? As bolsas são novinhas, compradas hoje mesmo! (...) Tá bom, vamos ao que interessa. Vou começar do início, pra não haver mal entendidos...
“O circo. (...) Eles estão na cidade desde março. (...) Provavelmente toda a trupe já foi embora, abandonou tudo, até a lona. Havia uma menina, um rapaz, e o pai de ambos. E um amigo meu, policial civil aqui no município. O que vou contar me afetou bastante, ainda não digeri isso, não consigo conceber.
“Tudo começou ontem, quando fui à delegacia buscar o Moacyr pra uma sessão de jogatina de sexta-feira. Ele estava de plantão, mas sempre dava uma escapada. O bar é perto, e o delegado, um sujeito que tinha cara de bom camarada, disse que não se importava e que o chamaria se precisasse. O bar fica a apenas uma quadra. Quando estávamos saindo, uma moça jovem e bonita, e um guri de uns doze anos, parecendo estarem com medo, entraram na delegacia. Eu a reconheci logo. Ela era uma das trapezistas do circo, chamada Clara, de apenas dezesseis anos. Ao sair, fiquei um pouco na porta, enrolando, e disse a Moacyr que precisava lembrar de algo. Foi uma desculpa pra ficar escutando, eu estava curioso, pois os jovens pareciam aterrorizados. Minha audição não me deixaria na mão.
“A menina implorava, pedia soluçando para que o delegado soltasse o irmão mais velho, um tal de Arcélio. Ao que parece, pelo que entendi da conversa, e pelo que arranquei de Moacyr depois, o tal Arcélio teria tentado comprar um remédio de uso veterinário para curar a bicheira de um elefante, e o dono da loja teria botado eles para fora. Pelo que ouvi da conversa da menina, seu irmão não agrediu ninguém, e sim o dono da espelunca os teria destratado. Por serem ‘gente de circo’! (...) Sim, ela estava junto. E parece que a desculpa do vendedor era essa mesma: ele não atendia ‘esse tipo de gente’. Seu irmão teria ficado ofendido e, em defesa da honra dos dois mais jovens, teria respondido ao homem de forma sarcástica. O sujeito então chamou a polícia e aí já viu... Pessoas de fora, pobres, contra um ‘nobre cidadão morador da cidade’, ativista da TFP... Mas quando pensei em intervir de alguma forma, escutei do delegado que ele soltaria o rapaz. Disse que a moça esperasse um pouco. Satisfeito, eu disse a Moacyr para irmos ao bar jogar poker. Foi um infeliz engano. Eram nove horas quando saímos, e ficamos jogando por umas três horas. Nesse tempo, muita desgraça aconteceu.
“Por uma dessas casuísticas inexplicáveis do destino, na nossa roda de jogo estava um jornalista francês, que disse em mau português que estava fazendo uma matéria sobre o futebol amador na periferia do Brasil, e que iria pernoitar na cidade. Esse jornalista, Jean Pierre, não me convenceu muito com essa história de ‘matéria sobre futebol’...
“Enquanto estávamos distraídos na roda de jogo, outro policial civil, Orestes, chegou ao local e chamou Moacyr para ir à delegacia, dizendo ser uma emergência. Sem ser convidado, fui logo atrás. E o jornalista também. Quando chegamos, havia muitas pessoas. Lá estavam o delegado Pompeu Malachias, com alguns policiais armados, a menina Clara com seu irmão, Arcélio e o pai dos três, que reconheci como Frederico, o mágico da trupe. Parece que o rapaz foi bastante agredido, estava machucado e com hematomas. Mas o que me chamou mais a atenção foi o estado da menina. Ela estava em um estado miserável, com os olhos vermelhos e encharcados, vergões por toda a pele que somente eu conseguia ver... O menino chorava agarrado a ela. O irmão mais velho, Arcélio, estava fora de si e gritava com o delegado. O pai dos jovens também estava exaltado. E o que ouvi disso tudo quase me deixou em frenesi de sangue. Naquela hora que saímos para jogar, o delegado levou a menina para uma cela e propôs soltar seu irmão se ela cedesse às sua vontade. E pelo jeito, ela concordou. O irmão teria visto, ou ouvido algo, e então teria começado a gritar. O pai teria chegado na hora. Parece que ele viria com a filha, mas acabou se atrasando por conta de um incidente de trânsito, sei lá, bateu a Kombi dele na DKW do tabelião, ou algo assim, e os filhos vieram na frente. O delegado estava furioso pelas acusações do Arcélio, e certamente teria colocado todos em uma cela no porão, se não tivesse visto o jornalista Jean Pierre, que fora recebido até pelo prefeito dois dias antes. Sendo o cidadão jornalista e francês, era celebridade, não pegaria bem pra polícia local usar a autoridade de forma descuidada na frente de repórteres estrangeiros. O delegado, então, para nossa grande surpresa, liberou a família. Disse para irem para casa. Só que algo não me cheirava bem.
“Chamei o tal Jean a um canto e lhe disse o que eu achava que aconteceria, e que precisaria da ajuda dele para tirar essa família da cidade em segurança. Ele concordou e fomos juntos para o circo, sempre acompanhando os quatro integrantes da família a uma distância segura. Eles choravam de ódio e indignação, e os dois homens mais velhos juravam vingança.
“Já perto da grande lona, eu os alcancei e pedi um minuto. Expliquei para eles que corriam perigo, e que precisavam ir embora desse Estado imediatamente. Frederico disse que mandaria sua família para longe, mas que ele ficaria para denunciar o delegado. Eu lhe expliquei que Pompeu Malachias era intocável, que os meios legais não ajudariam. E prometi, no calor da raiva, que eu mesmo o faria pagar. Nisso, escutei vozes atrás de mim e os olhos das pessoas daquela família se arregalaram. As vozes eram de Moacyr e Orestes, e perguntavam o que eu estava fazendo ali. Orestes tinha já o revólver na mão, e disse para Moacyr que eu e o jornalista teríamos que ‘sumir também’. Sim, ele foi enviado pelo delegado para um ‘serviço discreto’, matar Arcélio e Frederico, e talvez coagir Clara e Ricardinho a não falarem nada e negarem os acontecimentos da noite. Ou talvez simplesmente matá-los a todos. Mas o certo é que quando Orestes viu o jornalista e eu no local, todos nos tornamos alvo. Não havia como voltarem atrás, entende? Nem eu teria outra alternativa. Precisei matar Orestes rapidamente, embora eu desejasse saborear o terror em seus olhos. Eu o conhecia e não gostava nada dele. Corrupto, assassino, cafetão, brigão... Vivia constantemente embriagado. Moacyr ficou muito confuso. Infelizmente, precisei cuidar dele também. Foi triste, era um bom companheiro de jogo. E talvez não soubesse da ordem do delegado a Orestes. Mas ele acabou sacando a arma, então... Tentei fazer com que fosse rápido e indolor. Frederico pareceu se acalmar, Arcélio também. A menina e o menino entraram em choque. O jornalista estava apavorado e mudo, então menti que eu fazia parte do que sobrou do MR8, e isso pareceu aliviá-lo um pouco. Ele acreditou no blefe. Pedi que não divulgasse minha descrição nem meu nome para ninguém, e ele sorriu e disse que na verdade viera ao Brasil para investigar o caso de um suposto suicídio mal explicado de um jornalista, um tal de Herzog, ocorrido alguns meses atrás. Nem mesmo eu prestava atenção nessas coisas, e gente lá de longe vinha até aqui investigar isso. Dei sumiço nos corpos dos policiais usando a própria viatura Veraneio que Orestes dirigia. Quando achassem seus corpos, muitas pessoas inocentes talvez pagassem pela minha ousadia. Por isso eu os dissolvi com ácido e depois queimei o que sobrou num forno de forja bem longe daqui. O carro mandei pra um desmanche de um conhecido, e ninguém achará nem um parafuso dele. Frederico e seus filhos estão agora em segurança, em outro Estado. Eu lhes emprestei dinheiro. (...) Não vou aceitar devolução. Pessoas de circo são minha família, lembra, Gabriel? (...) E isso foi tudo que aconteceu.”
Bem, meu caro mestre, como eu disse, amanhã estarei de partida. Sem querer te apressar, preciso sair agora. Eu também tenho uma visitinha pra fazer, e precisa ser hoje. Uma outra conta para cobrar antes da viagem. Uma conta que vai ser reconfortante cobrar. O delegado Pompeu.

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