Bem... Se você ainda insiste em falar
no assunto... Ana, doce Ana... eu preferiria não lembrar. Tenho pesadelos -
ainda - todos os dias. Talvez pra você isso seja apenas uma curiosidade. Ah,
tantos curiosos... Mas são poucos os que suportariam. Pois bem, bebamos... A
noite é longa, e a eternidade nos brinda (Não sei se gosto mesmo disso...).
Beba, minha querida... Isso, beba...
"Amanhecia, e nós trocávamos a
guarda. Eram o quê?... Seis da manhã, eu acho. Fui então posicionar-me no nicho
da metralhadora." Aquilo era agoniante demais, pois sou claustrofóbico,
como você já sabe... "Espiava por um buraquinho de nada, um retângulo
estreito, e olhava o mar ainda escuro, tapado de neblina."
"- 'Que estupidez do
'Generalfeldmarschall' Hommel de mandar a gente pra cá, onde nada acontece...
Todos sabem que os ocidentais tentarão uma invasão pelo 'Pas de Calais''. -
Disse o jovem Kreter, um garoto empolgado, com apenas 17 anos, que queria
participar da coisa toda...
"- 'Cala a boca e apronta esse
café logo, novato!' - Gritou o velho 'Unteroffizier' Falke, o mais experiente
dentre nós.
"Ouvíamos explosões ao longe,
estampidos, vindos do interior... Achávamos que alguns 'Fallschirmjäger'
inimigos haviam pousado por ali. Talvez espiões. Talvez treinamento, não
sabíamos. O fato é que, dentre todos os nossos camaradas, ali, naquela praia
abandonada e esquecida por Deus, tínhamos a mais absoluta certeza de que não
veríamos nada! Nada além das notícias que chegavam pelo único e velho rádio, no
qual tocava de hora em hora nossa canção preferida. 'Lili Marleen' nos fazia
companhia o dia inteiro, e ajudava a aplacar o tédio. E aquela horrorosa
sensação de confinamento.
"O dia aclarou um pouco, e não
ligamos mais para as explosões. Então, olhei o mar, e algo não estava normal.
Vi algo que avultava na linha do horizonte.
"- 'É só o mar que está agitado,
'meine Leutnant'... há muito vento hoje, e as ondas estão revoltas!' - Disse o
velho Falke.
"Por instantes sosseguei. Mas
logo olhei novamente, e vi algo inimaginável... Algo acima do que qualquer
pessoa no mundo esperaria ver, vindo do mar... Algo que mudaria nossas vidas -
e a própria história - para sempre!
O alarme soou, e os gritos dos
camaradas ressoavam nas paredes de concreto do bunker, fazendo ecos
ensurdecedores...
"Então, posicionei-me melhor no
nicho e... Deus! Vi aquilo tudo vindo!
"Eram milhares, milhares e
milhares de objetos, de todos os tamanhos, de todas as formas, vindos do mar.
Navios cargueiros enormes, fragatas, canhoneiras, barcos menores e quase
quadrados, como eu mesmo nunca vira... Todo o horizonte estava tomado desses
estranhos objetos, que se aproximavam ameaçadores... Os tiros começaram a
partir do nosso e de outros bunkers...
As metralhadoras MG-40, incluindo a
minha, começaram a rasgar o ar sobre o aço que flutuava onipotente, ignorando
nossa ofensiva... Paramos de atirar, mas não cessou o pânico. Apenas
aguardamos.
"- É, parece que o
'Generalfeldmarschall' Hommel estava era certo, 'meine Leutnant'! - Gritou o
jovem Kreter, tomado de adrenalina. Foi o momento em que me compadeci de seu
futuro...
"Era 06 de junho de 1944, e ali
percebemos o engano de achar que estávamos imunes à guerra naquele local.
"Estávamos atentos. O sol já
iluminava toda a praia de Omaha. Então, quando
os barcos menores pararam, juntos às barreiras submersas, ficamos em posição de
espera. O ar parecia pesado, e a tensão acabava com nossos nervos. Os outros
bunkers já atiravam com suas MG-40, menos o nosso. Nem ao menos estávamos
acreditando naquilo tudo.
"Aí, tudo começou. As portas das
lanchas abriram-se, e vimos milhares de soldados saindo de seu interior. Mas
muitos, muitos mesmo, foram rapidamente cortados ao meio pelos projéteis que
viajavam a 8 mil metros por segundo. Nossas MG disparavam 25 tiros por segundo,
e despejamos tudo o que tínhamos em cima deles. Dali, eu não podia ver muita
coisa, mas o que vi foi o suficiente: homens como nós, de carne, osso e sangue
(muito sangue), tentando se aproximar da gente, atirando inutilmente contra
nós, e sendo partidos em
pedaços. Os víamos abaixo de nós, na praia, escondendo-se
entre os ouriços, ou deitando-se no chão. Explosões os mutilavam. Médicos
tentavam ajudar os caídos. Muitos nem sequer saíram da água...
Sei que este assunto te da sede, minha
adorada... Sirva-se de mais... Ou prefere sugar diretamente de meu pulso? Eu
deixo... Oh, sim! Eu continuo, se é o que quer...
"Foram horas e horas terríveis.
Homens tentando sair da água, atravessar os 300 metros de areia,
repletos de obstáculos, para chegar em uma área minada. Mas eu, naquela hora,
não tinha pena. O medo era maior que a empatia. Por isso, continuei abatendo
sem piedade todos os que eu enxergava. Como eu já disse, foram horas de agonia,
dos dois lados. Uma batalha de nervos. E de aço!
"Perto das 10 da manhã, os navios
deles começaram a bombardear nossos bunkers. Aí foi o fim. Aqueles de nós que
não fugiram para o interior, eram abatidos ou ficavam soterrados sob toneladas
de concreto. A esta altura, alguns estrangeiros já haviam passado a malha de
arame farpado e os campos minados. Alguns de nós foram incinerados vivos, pelos
lança-chamas infernais que estes demônios chamados humanos inventaram...
"Nós, eu e mais o meu grupo,
resistimos o que deu, depois fugimos também..
"Falke foi procurar o comandante,
e foi capturado dois dias depois, em 'Pas de Calais'. Ficou prisioneiro por
meses, e foi abatido em uma tentativa de fuga heróica. O jovem Kreter foi
alvejado em combate dois meses após, perto de Paris...
"Os outros, nem sei... Nunca mais
os vi."
Bem, minha doce dama, creio que não suporto
mais lembrar disso. Permita-me descansar de minhas dolorosas memórias agora, e
bebamos... Bebamos que a noite é longa. E a vida incerta!
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