domingo, 21 de julho de 2019

Crônicas de Siegfried III



Bem... Se você ainda insiste em falar no assunto... Ana, doce Ana... eu preferiria não lembrar. Tenho pesadelos - ainda - todos os dias. Talvez pra você isso seja apenas uma curiosidade. Ah, tantos curiosos... Mas são poucos os que suportariam. Pois bem, bebamos... A noite é longa, e a eternidade nos brinda (Não sei se gosto mesmo disso...). Beba, minha querida... Isso, beba...
"Amanhecia, e nós trocávamos a guarda. Eram o quê?... Seis da manhã, eu acho. Fui então posicionar-me no nicho da metralhadora." Aquilo era agoniante demais, pois sou claustrofóbico, como você já sabe... "Espiava por um buraquinho de nada, um retângulo estreito, e olhava o mar ainda escuro, tapado de neblina."
"- 'Que estupidez do 'Generalfeldmarschall' Hommel de mandar a gente pra cá, onde nada acontece... Todos sabem que os ocidentais tentarão uma invasão pelo 'Pas de Calais''. - Disse o jovem Kreter, um garoto empolgado, com apenas 17 anos, que queria participar da coisa toda...
"- 'Cala a boca e apronta esse café logo, novato!' - Gritou o velho 'Unteroffizier' Falke, o mais experiente dentre nós.
"Ouvíamos explosões ao longe, estampidos, vindos do interior... Achávamos que alguns 'Fallschirmjäger' inimigos haviam pousado por ali. Talvez espiões. Talvez treinamento, não sabíamos. O fato é que, dentre todos os nossos camaradas, ali, naquela praia abandonada e esquecida por Deus, tínhamos a mais absoluta certeza de que não veríamos nada! Nada além das notícias que chegavam pelo único e velho rádio, no qual tocava de hora em hora nossa canção preferida. 'Lili Marleen' nos fazia companhia o dia inteiro, e ajudava a aplacar o tédio. E aquela horrorosa sensação de confinamento.
"O dia aclarou um pouco, e não ligamos mais para as explosões. Então, olhei o mar, e algo não estava normal. Vi algo que avultava na linha do horizonte.
"- 'É só o mar que está agitado, 'meine Leutnant'... há muito vento hoje, e as ondas estão revoltas!' - Disse o velho Falke.
"Por instantes sosseguei. Mas logo olhei novamente, e vi algo inimaginável... Algo acima do que qualquer pessoa no mundo esperaria ver, vindo do mar... Algo que mudaria nossas vidas - e a própria história - para sempre!
O alarme soou, e os gritos dos camaradas ressoavam nas paredes de concreto do bunker, fazendo ecos ensurdecedores...
"Então, posicionei-me melhor no nicho e... Deus! Vi aquilo tudo vindo!
"Eram milhares, milhares e milhares de objetos, de todos os tamanhos, de todas as formas, vindos do mar. Navios cargueiros enormes, fragatas, canhoneiras, barcos menores e quase quadrados, como eu mesmo nunca vira... Todo o horizonte estava tomado desses estranhos objetos, que se aproximavam ameaçadores... Os tiros começaram a partir do nosso e de outros bunkers...
As metralhadoras MG-40, incluindo a minha, começaram a rasgar o ar sobre o aço que flutuava onipotente, ignorando nossa ofensiva... Paramos de atirar, mas não cessou o pânico. Apenas aguardamos.
"- É, parece que o 'Generalfeldmarschall' Hommel estava era certo, 'meine Leutnant'! - Gritou o jovem Kreter, tomado de adrenalina. Foi o momento em que me compadeci de seu futuro...
"Era 06 de junho de 1944, e ali percebemos o engano de achar que estávamos imunes à guerra naquele local.
"Estávamos atentos. O sol já iluminava toda a praia de Omaha. Então, quando os barcos menores pararam, juntos às barreiras submersas, ficamos em posição de espera. O ar parecia pesado, e a tensão acabava com nossos nervos. Os outros bunkers já atiravam com suas MG-40, menos o nosso. Nem ao menos estávamos acreditando naquilo tudo.
"Aí, tudo começou. As portas das lanchas abriram-se, e vimos milhares de soldados saindo de seu interior. Mas muitos, muitos mesmo, foram rapidamente cortados ao meio pelos projéteis que viajavam a 8 mil metros por segundo. Nossas MG disparavam 25 tiros por segundo, e despejamos tudo o que tínhamos em cima deles. Dali, eu não podia ver muita coisa, mas o que vi foi o suficiente: homens como nós, de carne, osso e sangue (muito sangue), tentando se aproximar da gente, atirando inutilmente contra nós, e sendo partidos em pedaços. Os víamos abaixo de nós, na praia, escondendo-se entre os ouriços, ou deitando-se no chão. Explosões os mutilavam. Médicos tentavam ajudar os caídos. Muitos nem sequer saíram da água...
Sei que este assunto te da sede, minha adorada... Sirva-se de mais... Ou prefere sugar diretamente de meu pulso? Eu deixo... Oh, sim! Eu continuo, se é o que quer...
"Foram horas e horas terríveis. Homens tentando sair da água, atravessar os 300 metros de areia, repletos de obstáculos, para chegar em uma área minada. Mas eu, naquela hora, não tinha pena. O medo era maior que a empatia. Por isso, continuei abatendo sem piedade todos os que eu enxergava. Como eu já disse, foram horas de agonia, dos dois lados. Uma batalha de nervos. E de aço!
"Perto das 10 da manhã, os navios deles começaram a bombardear nossos bunkers. Aí foi o fim. Aqueles de nós que não fugiram para o interior, eram abatidos ou ficavam soterrados sob toneladas de concreto. A esta altura, alguns estrangeiros já haviam passado a malha de arame farpado e os campos minados. Alguns de nós foram incinerados vivos, pelos lança-chamas infernais que estes demônios chamados humanos inventaram...
"Nós, eu e mais o meu grupo, resistimos o que deu, depois fugimos também..
"Falke foi procurar o comandante, e foi capturado dois dias depois, em 'Pas de Calais'. Ficou prisioneiro por meses, e foi abatido em uma tentativa de fuga heróica. O jovem Kreter foi alvejado em combate dois meses após, perto de Paris...
"Os outros, nem sei... Nunca mais os vi."
Bem, minha doce dama, creio que não suporto mais lembrar disso. Permita-me descansar de minhas dolorosas memórias agora, e bebamos... Bebamos que a noite é longa. E a vida incerta!

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