Capítulo 4: A Nova Geração
Cena 1: Perguntas Indiscretas
Sexta-feira,
26 de maio de 2000
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Haviam
completado-se quatro semanas que começáramos o treinamento intensivo de nossos
novos alunos. Neste tempo, ensinamos-lhes de tudo: desde o básico da
sobrevivência na selva, no deserto e na caatinga seca, aos mais requintados
métodos de rastreamento e caça, e de combate na selva. Ensinamos-lhes a montar
acampamentos com segurança, a limpar as áreas de estadia, a evitar animais
peçonhentos e a extrair água das fontes mais improváveis. Demos-lhes lições de
conduta, de comportamento e de discrição. Afinal, nossa missão como um todo era
secreta.
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Todos
os novos aprendizes demonstraram empolgação e interesse, mesmo nas piores
noites sem sono, sentados em poças de lodo, sob a finíssima chuva gelada de
maio. Nossa tarefa de prepará-los para o que estava por vir já estava quase
concluída. Só faltava mesmo uma coisa... E essa era a pior parte...
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Naquela
sexta-feira, mesmo com a garoa gelada que caía, pus todos os novatos em
formação, no pátio do acampamento. Kami havia me incumbido de dar as intruções
do dia. Não passava das sete horas quando estávamos todos ali, prontos.
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Kami
tocava seu violino na cabana de toras, há uns cento e cinqüenta metros. Podíamos
ouví-lo... Tocava o tema Schindler’s List,
de John Williams.
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Eu
ainda não sabia exatamente o que dizer. As perguntas surgiriam... Respirei
fundo, e comecei a falar:
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―
Combatentes! Estamos aqui reunidos para nos despedirmos!
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Houve
murmúrios. Todos estavam surpresos. Diego apenas sorria.
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―
Amigos... O que os senhores, e as senhoras, fizeram até aqui... mostra o quanto
são especiais. Os senhores e as senhoras são, sem sombra de dúvidas, guerreiros
de verdade... e soldados de seu País! Eu tenho orgulho de ter estado convosco!
Fizeram um bom trabalho!
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Fernanda,
a delegada paranaense, adiantou-se:
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―
Despedidas?! Acabou o curso?! Para onde vamos agora?
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―
O delegado Kami, o tenente Diego, o biólogo Miguel e eu fomos reconvocados;
desta vez, para uma missão de reconhecimento no Paraná. Os senhores, e as
senhoras, ficarão com o capitão Maurício e com o cabo Sady, praticando tiro e
educação física por pelo menos mais um mês. Depois, estarão prontos para o
trabalho. Eventualmente, nas próximas semanas, outros oficiais das forças
armadas virão, para testá-los no treinamento de sobrevivência. Mostrem-lhes o
que lhes ensinamos.
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Adriana,
a baiana, perguntou pela milésima vez:
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―
Agente, diga-nos, por favor: afinal, o que vamos enfrentar?
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Bardini,
o policial militar gaúcho, completa a pergunta:
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―
Estamos apenas nós aqui... Sei que ordens são ordens... Mas gostaríamos de
saber. Esta história de “recapturar animais raivosos” é uma piada. O governo
não gastaria tanto por uma bobagem...
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Olhei
em volta, e a única ameaça que vi foi Diego. Ele era orgulhoso e teimoso, mas
perdera aquele “ar superior”, aquela vontade de “ferrar” os companheiros.
Agora, ele era outro. Respondi apenas:
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―
Amigos, tudo se esclarescerá depois de amanhã.
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―
O que tem depois de amanhã?! ― Indagou Carlos, o gaúcho que tornara-se mineiro
por escolha.
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Diego
assumiu a palavra:
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―
Depois de amanhã, na noite de domingo, os senhores serão levados ao Monte dos
Condores, onde serão esclarecidas todas as suas dúvidas. Lá, o Coronel Mendes
explicará, a todos os novos alunos, a verdadeira natureza da missão. Antes
disso, desculpem! Nada mais podemos adiantar.
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(Sábado, 11
de junho de 2011. 23:00.)
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Cena 2: Baixas no Caminho
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Antes
que eu os visse, na manhã do dia seguinte, partimos. Estávamos deixando para
trás os novos víboras, com mais dúvidas do que certezas, mas prontos. A bordo
do caminhão da FAB, sob o toldo, junto com meus companheiros, despedi-me do
acampamento. Não sabíamos o que viria a seguir. E essa era a emoção do trabalho.
Isso era o tempero daquele serviço.
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Voamos
de Hércules para o Paraná. Saltamos sobre a fazenda alvo perto das onze da
manhã. Antes que pudéssemos dobrar os velames, fomos interceptados por uma
Vitara amarela, que chegou e estacionou na clareira. Dela, quatro homens
desceram, e os reconheci. Kami adiantou-se:
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―
Senhores! Capitão Macedo! Delegado Landi!
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―
Bom dia, delegado Kami! Fizeram bom vôo? Bom pouso?
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Cumprimentamo-nos
todos. Os outros dois eram agentes ambientais locais. O delegado Landi falou em
seguida:
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―
Caros companheiros, façam o trabalho de reconhecimento e rastreamento. Se
houver possibilidade de o exemplar ainda estar aqui, eliminem tal
possibilidade. Acho que, a essa altura, deve estar longe...
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―
E os donos da fazenda? ― Indagou Diego.
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―
Foram orientados a não sairem de casa. Se o fizerem, será pela estrada. Estão
bastante assustados! ― Respondeu o capitão Macedo.
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―
Não apareçam diante deles. Trabalhem apenas nas matas fechadas... Avisamos que
daríamos uma olhada, mas não quero que os vejam assim, prontos para uma guerra...
― Ressaltou Landi.
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Passamos
por todas as brenhas daquelas paragens, mas nada encontramos. Exceto alguns
animais estraçalhados... Andamos sob a sombra de altos eucaliptos, atravessamos
córregos, pulamos cercas, e percorremos tudo, ora por caminhos brandos, ora por
entre caatingas espinhentas.
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Ao
final da tarde, fomos guiados até uma xácara próxima, onde passaríamos a noite.
Ali tivemos uma surpresa. Encontramos Ricardinho, o sobrinho de seu Geraldo. Eu
os conhecera havia tempos, desde os meus anos de FAB. O rapaz recebeu-nos
sorridente, mas parecia triste, pálido...
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―
Ricardinho! Como vai, amigo?! ― Assumi a frente.
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―
Levando... Tudo bem com vocês?! ― Rebateu ele.
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―
Tu conhece ele, Gab? ― Quis saber Kami.
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―
Conheço ele e o tio dele, seu Geraldo. Tive a alegria de conhecê-los nos meus
tempos de FAB, lá por 1996, quando eu atuava no Pára-Sar. Certo dia, enquanto
eu participava do resgate a este garoto, que estava perdido no mato, acabei também
me perdendo do resto do grupo. Encontrei o menino, mas ficamos sem rumo. Após
umas quatro horas, já quase noite, o senhor Geraldo, experiente mateiro e guia,
que também fazia buscas por conta própria, nos encontrou antes da equipe. Fomos
até seu rancho, que na época ficava à beira do Tapajós, entre os três estados,
e ali passamos a noite. No dia seguinte, contatamos o resto da equipe, e fomos
convidados para um churrasco. Foi bem compensador...
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Nós
sorríamos, mas havia algo de melancólico no rosto do rapaz, agora com seus trinta
anos. Perguntei diretamente sobre seu tio.
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―
Meu tio se foi. Ele nos deixou há uma semana... Acho que foi do coração. ―
Disse ele, e não continuou.
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Sentimos muito! ― Dissemos, quase ao mesmo tempo, Kami, Diego, Miguel e eu.
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―
Vocês vão ficar até quando? Pretendia fazer um churrasco amanhã. ― Disse
Ricardinho.
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―
Acho que podemos ficar sim! ― Falou Kami, olhando suas anotações.
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Ricardinho
pareceu satisfeito. Mas eu fiquei sem saber o que dizer. Coisas assim são
complicadas. É uma situação delicada.
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Andando
pelo pátio da chácara, Ricardinho mostrava-nos suas plantas, seus animais, suas
instalações. Vi, pendurada à parede do galpão, uma rede de pesca trançada pela
metade, e indaguei:
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―
Ricardo, aquela rede ali é de pesca? Tem muito peixe por aí?
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―
Tem um lago a cerca de duas légua
daqui. Tio Geraldo era qui pescava!
Eu só pesco de caniço! Ele tava fazendo essa rede quando se sentiu mal. Faz já
uma semana... ― Disse baixando a cabeça.
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Eu posso...? ― Perguntei.
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―
Qué pegá? Pega. ― Respondeu.
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Tirei
a rede com cuidado, e a levei para o pátio dos fundos, onde todos estavam
sentados em bancos de tronco, beliscando umas frutas, ao redor de uma enorme
fogueira preparada para ser acesa à noite. Dormiríamos no galpão por ordem de
Kami. Este sussurrou para mim, enquanto eu tentava trançar a tal da rede:
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O senhor Geraldo era um colaborador da Missão. Era rastreador e guia. Acho que
confiavam nele, e no seu sobrinho. É uma pena...
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―
Era um ótimo sujeito. ― Sentenciei eu.
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Diego,
rindo de minha desastrosa tentativa de trançar a rede, achegou-se, e largou:
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―
O que raios tu tá fazendo?!
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Homenageando um amigo. ― Respondi.
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Todos
ficaram sem entender, exceto Kami.
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À
noite, ao calor da enorme fogueira central, sentados em nossos bancos de toras,
conversávamos assuntos diversos. Kami estava observando a mata ao redor. Diego
limpava suas armas. Miguel fuçava em suas câmeras. Ricardinho me olhava a
trançar a rede sem sucesso. Por fim, ele perguntou:
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―
Por que tá tentando fazer isso?
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Ele tá homenageando teu tio. ― Revelou Kami.
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―
Como assim?! ― Quis saber Diego.
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Então,
Kami começou a contar uma história acontecida há uns oito meses, quando
estávamos talvez em nossa décima missão. Dizia ele:
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“Estávamos em pleno pantanal do Mato
Grosso, acampados numa clareira sombria, tentando localizar um víbora perdido. Havia
um guia, um índio velho chamado Pedro, que sempre estivera conosco em nossas
missões. Ele era o guia oficial do primeiro grupo víbora da Missão Condor. Eu,
Gabriel, Sereno, que era nosso chefe e instrutor... E Pedro.
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“Certo dia, perto do ocaso, Pedro fazia
seu “assado de abacaxi”, coisa de que gostava bastante ― e não me perguntem o porquê. Gabriel e eu
nunca comíamos. Sereno até experimentou, mas depois disto, sempre passava a
vez. Estava o índio Pedro entretido com seu “abacaxi assado”, quando escutou ruídos
estranhos vindos da direção do rio. Como era curioso, e bom caçador, tentou
aproximar-se do ruído cautelosamente, sem ser notado. Pensou tratar-se de uma
anta ou de uma queixada. Mas foi um grande engano: o ruído era causado por um
enorme javali. Este, surpreendido enquanto fuçava um cupinzeiro, assustou-se e jogou-se
contra o velho índio como se fosse um touro. Pobre Pedro... Não agüentou o
golpe. Foi jogado a uns dois metros para o ar, caindo novamente sobre o animal,
que logo o pisoteou. Acho que morreu quase que instantaneamente. A perna dele
quase foi separada do corpo, e o sangramento o matou antes que pudesse entender
o que acontecera. Sereno atirou oito vezes no animal com sua escopeta calibre
12 de repetição ― Chegou a
recarregar... Quando o bicho caiu, todo o sangue do pobre velho estava na
terra. Chamamos socorro pelo rádio de longa distância, e uma lancha nos esperou
na margem do Kuluene. Levamos Pedro numa padiola, mas sabíamos que já era
tarde.
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“Ao voltar para o acampamento, sem
nosso amigo, todos nós, Sereno, Gab e eu, com um nó na garganta, olhamos aquele
abacaxi ali, assando, esperando seu apreciador que não mais viria. Naquela
noite, Gab serviu-se do abacaxi, e o ofereceu a Sereno e a mim. Era como se
fosse algo a ser feito em consideração ao amigo. Não deixar sua vontade
inacabada... Terminar o que ele começou.”
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Kami
acabou de contar a história, e Ricardo aproximou-se, dizendo:
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―
Deixa que eu faço isto. Eu sei como fazer.
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(Domingo, 12
de junho de 2011. 21:27.)
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Cena 3: A Volta ao Ninho das Víboras
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