sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Abraçados - Crônicas Vampirescas - Livro 1




Introdução


A guapa acrobata do ar gira e volita sobre o público, lisos cabelos dourados pendidos e longos, rosto luminoso de sorrisos e gliter. Abaixo dela, a estrondosa salva de aplausos após instantes de medo e excitação. O aro metálico é seu refúgio, assim como o trapézio é seu quintal. O espetáculo ilumina a noite preenchendo a desolação com luz e o silêncio com vida. Ela desce ao picadeiro e faz as reverências e mesuras ao público. Seus lábios aquecem o vento e sua alegria irradia claridade.
Em seu camarim-treiler, já trocando a malha por uma roupa comum, Amanda sorri lembrando que faz o que ama, finalmente. O circo é sua casa e está entranhado em sua alma. Sua mente tenta isolar esses curtos mas tão imensos lapsos de felicidade da dura realidade que a espera logo após, quando então o mundo reclama seu direito de ferir e destruir.
A prostituição compulsória, o abuso e a exploração perpetrados por sua tutora reclamam agora seu espaço indigno, mais forçado que consentido, e a menina chora. Chora lembrando os bons tempos em que a antiga tutora a protegia de tudo e de todos. Uma dádiva retirada de sua existência havia alguns anos. A partir de então, dor. Por isso Amanda valoriza esses momentos em que pode ser ela mesma. Contudo, algo está para mudar.
Seu cliente, hoje, é alguém especial. Quando ele entra na tenda armada para tal fim, ela sorri. Não é alguém comum, embora ela não saiba nada sobre ele. Tudo o que ela sabe é que, por alguma razão que desconhece, confia nele total e irrestritamente. Seu nome é Siegfried, ou pelo menos foi assim ele se apresentou há alguns meses em uma cidade próxima, durante uma turnê circense.
Naquela ocasião, ela e um dos palhaços compravam comida em um pequeno mercado, e foram hostilizados pelo dono e por um cliente que não gostavam de “ciganos”, o que seria apenas metade do motivo. Ambos também eram clientes do negócio paralelo da tutora de Amanda, o que os fez sentirem-se constrangidos por ter que interagir com a moça na rua. Mas Siegfried estava lá, e os defendeu. Com seu notável sotaque austríaco, se fez ouvir e impôs seu ponto de vista.
Desde ali, criaram uma espécie de afinidade inexplicável e implícita. Durante as apresentações do circo, lá estava ele na plateia. E após, saíam para conversar, quando a tutora de Amanda não a “emprestava” para seus clientes.
Ficaram íntimos, e ela lhe contou sua vida, desde quando fora deixada recém nascida num circo onde a dona, uma senhora europeia, muito bondosa, a criou como sua enquanto vivia. E o que era obrigada a fazer agora, pela nova tutora, que seria a filha mais velha e legítima dessa senhora.
Agora, ele sabia de tudo. Mas ela não sabia quase nada sobre ele, exceto que viera da Europa havia algum tempo.
Siegfried sorri com ternura, e hesita na entrada.
— Que bom que tu veio! — Diz Amanda com entusiasmo.
— Vim te trazer um presente! — Responde.
— O quê? — É a expressão supresa de quem jamais ganhara um presente. — O que é?!
— É tanto um presente maravilhoso quanto uma maldição desesperadora. — Revela.
— Seja o que for, eu quero... — Responde ela, de um jeito emocionado e triste ao mesmo tempo.
— Gostaria de permanecer aqui, em 1972, para sempre? — Pergunta ele, rindo.
— Credo! Não! — Ela ri também. — Mas eu quero teu presente... O que é?!
— A eternidade. — Sussurra Siegried.

* * * *

domingo, 21 de julho de 2019

Flores Laceradas

“Seja bem vindo, mestre! Entre! Minha casa, tua casa. As notícias correm rápido... Creio que a visita tenha algo a ver com o rebuliço de ontem, não tem? (...) Imaginei. Tive certeza de que tu me procuraria depois desses fatos tão desagradáveis... Eu não tive escolha. Fiz o que precisava ser feito.
“Me perdoa, mestre, mas não vou te chamar de príncipe. Tu sabe. Eu te respeito e te admiro, mas não participo da ‘família’. Sou um anarquista, lembra?! (...) Pois então! Sente-se e vamos conversar um pouco, quero te contar o que houve nesse ‘teu domínio’. E preciso contar hoje! (...) Sim, eu vou! As coisas já estão arrumadas e me mando ainda amanhã. Tu sabe... Siegfried Keller é um aventureiro, um eterno andarilho! Preciso de novos ares noturnos para digerir o que aconteceu ontem. Aceita uma taça de um tinto? As bolsas são novinhas, compradas hoje mesmo! (...) Tá bom, vamos ao que interessa. Vou começar do início, pra não haver mal entendidos...
“O circo. (...) Eles estão na cidade desde março. (...) Provavelmente toda a trupe já foi embora, abandonou tudo, até a lona. Havia uma menina, um rapaz, e o pai de ambos. E um amigo meu, policial civil aqui no município. O que vou contar me afetou bastante, ainda não digeri isso, não consigo conceber.
“Tudo começou ontem, quando fui à delegacia buscar o Moacyr pra uma sessão de jogatina de sexta-feira. Ele estava de plantão, mas sempre dava uma escapada. O bar é perto, e o delegado, um sujeito que tinha cara de bom camarada, disse que não se importava e que o chamaria se precisasse. O bar fica a apenas uma quadra. Quando estávamos saindo, uma moça jovem e bonita, e um guri de uns doze anos, parecendo estarem com medo, entraram na delegacia. Eu a reconheci logo. Ela era uma das trapezistas do circo, chamada Clara, de apenas dezesseis anos. Ao sair, fiquei um pouco na porta, enrolando, e disse a Moacyr que precisava lembrar de algo. Foi uma desculpa pra ficar escutando, eu estava curioso, pois os jovens pareciam aterrorizados. Minha audição não me deixaria na mão.
“A menina implorava, pedia soluçando para que o delegado soltasse o irmão mais velho, um tal de Arcélio. Ao que parece, pelo que entendi da conversa, e pelo que arranquei de Moacyr depois, o tal Arcélio teria tentado comprar um remédio de uso veterinário para curar a bicheira de um elefante, e o dono da loja teria botado eles para fora. Pelo que ouvi da conversa da menina, seu irmão não agrediu ninguém, e sim o dono da espelunca os teria destratado. Por serem ‘gente de circo’! (...) Sim, ela estava junto. E parece que a desculpa do vendedor era essa mesma: ele não atendia ‘esse tipo de gente’. Seu irmão teria ficado ofendido e, em defesa da honra dos dois mais jovens, teria respondido ao homem de forma sarcástica. O sujeito então chamou a polícia e aí já viu... Pessoas de fora, pobres, contra um ‘nobre cidadão morador da cidade’, ativista da TFP... Mas quando pensei em intervir de alguma forma, escutei do delegado que ele soltaria o rapaz. Disse que a moça esperasse um pouco. Satisfeito, eu disse a Moacyr para irmos ao bar jogar poker. Foi um infeliz engano. Eram nove horas quando saímos, e ficamos jogando por umas três horas. Nesse tempo, muita desgraça aconteceu.
“Por uma dessas casuísticas inexplicáveis do destino, na nossa roda de jogo estava um jornalista francês, que disse em mau português que estava fazendo uma matéria sobre o futebol amador na periferia do Brasil, e que iria pernoitar na cidade. Esse jornalista, Jean Pierre, não me convenceu muito com essa história de ‘matéria sobre futebol’...
“Enquanto estávamos distraídos na roda de jogo, outro policial civil, Orestes, chegou ao local e chamou Moacyr para ir à delegacia, dizendo ser uma emergência. Sem ser convidado, fui logo atrás. E o jornalista também. Quando chegamos, havia muitas pessoas. Lá estavam o delegado Pompeu Malachias, com alguns policiais armados, a menina Clara com seu irmão, Arcélio e o pai dos três, que reconheci como Frederico, o mágico da trupe. Parece que o rapaz foi bastante agredido, estava machucado e com hematomas. Mas o que me chamou mais a atenção foi o estado da menina. Ela estava em um estado miserável, com os olhos vermelhos e encharcados, vergões por toda a pele que somente eu conseguia ver... O menino chorava agarrado a ela. O irmão mais velho, Arcélio, estava fora de si e gritava com o delegado. O pai dos jovens também estava exaltado. E o que ouvi disso tudo quase me deixou em frenesi de sangue. Naquela hora que saímos para jogar, o delegado levou a menina para uma cela e propôs soltar seu irmão se ela cedesse às sua vontade. E pelo jeito, ela concordou. O irmão teria visto, ou ouvido algo, e então teria começado a gritar. O pai teria chegado na hora. Parece que ele viria com a filha, mas acabou se atrasando por conta de um incidente de trânsito, sei lá, bateu a Kombi dele na DKW do tabelião, ou algo assim, e os filhos vieram na frente. O delegado estava furioso pelas acusações do Arcélio, e certamente teria colocado todos em uma cela no porão, se não tivesse visto o jornalista Jean Pierre, que fora recebido até pelo prefeito dois dias antes. Sendo o cidadão jornalista e francês, era celebridade, não pegaria bem pra polícia local usar a autoridade de forma descuidada na frente de repórteres estrangeiros. O delegado, então, para nossa grande surpresa, liberou a família. Disse para irem para casa. Só que algo não me cheirava bem.
“Chamei o tal Jean a um canto e lhe disse o que eu achava que aconteceria, e que precisaria da ajuda dele para tirar essa família da cidade em segurança. Ele concordou e fomos juntos para o circo, sempre acompanhando os quatro integrantes da família a uma distância segura. Eles choravam de ódio e indignação, e os dois homens mais velhos juravam vingança.
“Já perto da grande lona, eu os alcancei e pedi um minuto. Expliquei para eles que corriam perigo, e que precisavam ir embora desse Estado imediatamente. Frederico disse que mandaria sua família para longe, mas que ele ficaria para denunciar o delegado. Eu lhe expliquei que Pompeu Malachias era intocável, que os meios legais não ajudariam. E prometi, no calor da raiva, que eu mesmo o faria pagar. Nisso, escutei vozes atrás de mim e os olhos das pessoas daquela família se arregalaram. As vozes eram de Moacyr e Orestes, e perguntavam o que eu estava fazendo ali. Orestes tinha já o revólver na mão, e disse para Moacyr que eu e o jornalista teríamos que ‘sumir também’. Sim, ele foi enviado pelo delegado para um ‘serviço discreto’, matar Arcélio e Frederico, e talvez coagir Clara e Ricardinho a não falarem nada e negarem os acontecimentos da noite. Ou talvez simplesmente matá-los a todos. Mas o certo é que quando Orestes viu o jornalista e eu no local, todos nos tornamos alvo. Não havia como voltarem atrás, entende? Nem eu teria outra alternativa. Precisei matar Orestes rapidamente, embora eu desejasse saborear o terror em seus olhos. Eu o conhecia e não gostava nada dele. Corrupto, assassino, cafetão, brigão... Vivia constantemente embriagado. Moacyr ficou muito confuso. Infelizmente, precisei cuidar dele também. Foi triste, era um bom companheiro de jogo. E talvez não soubesse da ordem do delegado a Orestes. Mas ele acabou sacando a arma, então... Tentei fazer com que fosse rápido e indolor. Frederico pareceu se acalmar, Arcélio também. A menina e o menino entraram em choque. O jornalista estava apavorado e mudo, então menti que eu fazia parte do que sobrou do MR8, e isso pareceu aliviá-lo um pouco. Ele acreditou no blefe. Pedi que não divulgasse minha descrição nem meu nome para ninguém, e ele sorriu e disse que na verdade viera ao Brasil para investigar o caso de um suposto suicídio mal explicado de um jornalista, um tal de Herzog, ocorrido alguns meses atrás. Nem mesmo eu prestava atenção nessas coisas, e gente lá de longe vinha até aqui investigar isso. Dei sumiço nos corpos dos policiais usando a própria viatura Veraneio que Orestes dirigia. Quando achassem seus corpos, muitas pessoas inocentes talvez pagassem pela minha ousadia. Por isso eu os dissolvi com ácido e depois queimei o que sobrou num forno de forja bem longe daqui. O carro mandei pra um desmanche de um conhecido, e ninguém achará nem um parafuso dele. Frederico e seus filhos estão agora em segurança, em outro Estado. Eu lhes emprestei dinheiro. (...) Não vou aceitar devolução. Pessoas de circo são minha família, lembra, Gabriel? (...) E isso foi tudo que aconteceu.”
Bem, meu caro mestre, como eu disse, amanhã estarei de partida. Sem querer te apressar, preciso sair agora. Eu também tenho uma visitinha pra fazer, e precisa ser hoje. Uma outra conta para cobrar antes da viagem. Uma conta que vai ser reconfortante cobrar. O delegado Pompeu.

Azaléia Invernal

“Aquilo foi como se tivesse sido um sonho, nada mais. E não faz tanto tempo assim, para parecer apenas sonho. Todos me olhavam embasbacados enquanto eu rodopiava naquela argola a cinco metros do chão. O silêncio e os suspiros, de vez em quando, eram abafados pelos aplausos. Crianças sorriam admiradas, idosos pareciam apavorados, e moças desviavam o rosto para não olhar... A fanfarra alegre do circo dava lugar a uma música de suspense quando eu subia no aparelho. E os gritos das pessoas sem ar me deliciavam quando eu fingia cair e ficava pendurada pelos pés, balançando em círculos. Cavalheiros levantavam-se, prontos a me socorrer, porém, eu não caía. Continuava lá, voando, sorridente, brilhando entre lantejoulas e paetês.”
(Argh!!!) Ai! Deixa eu continuar, Beto... “Em todos esses anos, nunca havia sofrido um acidente. A pior coisa que me acontecera fora rasgar a meia-calça durante uma subida. E só.” Ah, Beto, sinto saudades imensas daquele circo! Mesmo tendo que passar meus dias dentro de uma caixa fechada, incapaz, impotente, à mercê do que quer que fizessem comigo entre a alvorada e o ocaso. (Ffff!) Bem... Não era assim tão ruim, pois o dono do circo fazia tudo o que eu pedia, e você já imagina porquê. Mesmo assim, era arriscado. “Ninguém da trupe sabia sobre mim, mas havia uma amiga e colega que desconfiava de algo, e mesmo assim ela sempre me ajudava e protegia. Todos respeitavam meu pedido para não ser incomodada durante o dia, mas vai saber o que poderia motivar uma pessoa a quebrar esse acordo... Afinal, para eles eu era tão humana quanto qualquer um.” (Argh!!!) Por favor, para com isso, Beto!!! (Ffff!)
“Numa certa vez, em julho de 1976, montáramos a lona em uma área baldia de uma cidade do interior do Paraná chamada Marialva, nos arredores de Maringá. Para o dono do circo (e para todos nós), era uma oportunidade! Mas o que eu não sabia, é que aquele lugar era domínio de lupinos. Sim, teu povo dominava o lugar! Mas como eu poderia saber? Eu mal sabia que vocês existiam! Logo que chegamos, o senhor Hiroshi e seu gerente, Giácomo, contrataram trabalhadores locais para montar as estruturas e levantar a lona, dentre outros serviços. Em geral, eram rapazes divertidos e até um pouco abusados, pois ficavam dizendo gracinhas para Sônia, minha amiga. Ela era contorcionista e também a noiva e a partner do atirador de facas. Como a maior parte do serviço era feita durante o dia, só fui vista por eles em seu terceiro dia de trabalho, pela noite, pois ficaram até mais tarde para acabar uns consertos. Seria a noite de estréia. De início falaram as mesmas gracinhas que haviam dito a Sônia, mas ignorei, assim me deixariam em paz como a deixaram também. Entretanto, entre eles, havia um que me chamou a atenção. Não apenas por instinto, intuição ou por ele ter um cheiro diferente. Mas pela forma estranha com que me olhava. Seu nome, ao que me lembro, era Radamés. Em seu olhar havia algo, como se ele soubesse e estivesse vendo o pior exemplar da minha espécie... Naquela hora, sem saber por que, eu senti muito medo. Mas era a noite de estreia, e eu precisava estar bem, pois me apresentaria no final, antes do grande trapezista russo.
“Madame Madalena era quem negociava com eles, e por volta das dezenove horas, quando passávamos pelo picadeiro rumo aos treilers-camarim, ela nos apresentou, convidando-os a assistir ao espetáculo com suas famílias.
“— Amigos, esta é Sônia. Ela é contorcionista e também é a noiva de Vanderlei, o atirador de facas, além de ser sua partner. Esta é Amanda, acrobata e trapezista, e às vezes ela ajuda o mágico chinês,  também como partner.”
Calma, calma!, por favor, deixa eu continuar! “Cumprimentamos os oito moços com um sorriso tímido e um abano de mão. Eles pareceram satisfeitos com o convite para voltar, mas um deles apenas me encarava com ferocidade. Não consegui prestar atenção em todos os nomes ditos por Madame Madá, mas o dele eu não esqueci. Radamés. O que poderia ter de tão assustador naquele moleque de não mais que vinte anos? Bem, isso eu descobriria mais tarde, naquela mesma noite.
“Fomos para o camarim nos preparar para as apresentações. Não comentei nada com Sônia, para não deixa-la ainda mais desconfiada. O espetáculo começara enquanto nos vestíamos e maquiávamos, e do treiler podia-se ouvir tudo o que ocorria debaixo da lona. Os palhaços interagindo com o público, o elefante fazendo graça, outro palhaço brincando com um macaco, o domador de leões (que era o próprio Hiroshi), os equilibristas e os cavalos domados. Logo que Sônia saiu para fazer seu número de contorcionismo, um menino, que fora adotado pelo mágico, entrou no meu treiler, tirou o pirulito da boca e me disse:
“— Amanda, tem quatro moços aí querendo falar contigo... Eles estão entre o caminhão cozinha e a carreta da lona, lá no fundo.
“Meu instinto gritava que algo estaria errado e que seria perigoso. Mas eu também não poderia correr o risco de colocar minha única família em perigo. Vestida para a apresentação, fui até o local. Apesar do vento e do frio, não coloquei nenhum tipo de cobertura, como seria natural a uma humana fazer. A roupa era uma collant de nylon em três cores, imitando um maiô cavado preto, com braços e pernas cor de pele, e babados vermelhos nas junções. Me arrependi de não colocar uma manta por cima para poder fingir estar sentido frio de uma forma mais convincente.
“Cheguei ao local mas não vi ninguém. Olhei para todos os lados e nada vi, mas estava sentindo que era observada. O primeiro deles surgiu de cima da carreta. Voltei-me para ele enquanto outro se movimentava bem atrás de mim. Outros dois surgiram ao mesmo tempo de direções opostas, cercando-me. Cruzei os braços demonstrando um misto de medo e frio e suspirei, mas eles não se convenceram. A primeira coisa que o maior deles questionou foi:
“— O que faz aqui?
“— O que querem nesta cidade? — Perguntou o que estava atrás de mim.
“— Quantos são? — Indagou um terceiro.
“— Sou apenas eu. E nós fazemos isto! — Disse eu, apontando para o circo.
“Um quarto que ainda não havia falado disse:
“— Quer que a gente acredite que tu é a única parasita entre tantos?
“— Sim, a única! — Respondi. — Todos os demais não sabem.
Dois deles riem.
“— Falo sério. Voltem durante o dia e vejam vocês mesmos! Serei a única que não estará entre eles.
“— Eles não sabem mesmo?
“— Não! Eu juro! — Tentei ser convincente, mas isso seria fácil para eles confirmarem.
“— Qual teu objetivo na nossa terra? — Perguntou o maior.
“O menino que me dera o recado surge correndo e me chamando, e os quatro sujeitos se entreolham, como se não soubessem o que fazer.
“— Amanda! Amanda! É a tua vez, vai pro picadeiro!
“Olhei para os quatro bem nos olhos e pedi:
 Podemos conversar após o espetáculo? Eles precisam de mim agora...
“Eles se entreolharam em dúvida, e meio a contragosto fizeram que ‘sim’ com a cabeça.
“No picadeiro, os aplausos e assovios ensurdeciam. Eu fazia mesuras para a plateia enquanto os assistentes testavam meu equipamento. Naquele tempo nem rede havia, quanto mais cabos de segurança, como os de hoje. Eu não poderia errar, ou eu poderia revelar minha natureza diante de um enorme público. Afinal, cair de cinco metros sobre um chão duro e sobreviver seria, no mínimo, um milagre.
“Enquanto o arco metálico subia, puxado por assistentes, eu me elevava acima do barulho da plateia. Por um momento, breve mas marcante, vi os rapazes que me chamaram lá fora misturados à plateia. Um em cada canto. Como se temessem que eu fugisse. Pude olhar cada um deles bem dentro dos olhos por frações de um segundo, e eles souberam que eu os estava vendo. Por um momento temi, e percebi que não estava mais sorrindo. Imediatamente abri um lindo sorriso e mandei beijos para a plateia, antes que percebessem algo. O assistente fez com que o arco girasse em círculos sobre o picadeiro, e tudo o que eu tinha que fazer era me equilibrar e fazer posições desafiadoras diante da gravidade. Eu girava e pensava: ‘Ai, o que será que eles querem comigo? Serão caçadores de bruxas? Fanáticos religiosos puritanos?’ Eu não sabia. Na época eu ainda não reconhecia vocês pelo cheiro. E o cheiro deles era forte e marcante, mas desconhecido. Foi então que vi o moço chamado Radamés conversando com um deles mais perto da entrada. Radamés cochichou algo, apontou para mim e saiu. O outro rapaz ficou na mesma postura, como se montasse guarda.
“‘Bom’, pensei, ‘já que esta pode ser minha última apresentação, então, vai ser a melhor!’ Então eu fiz a melhor performance que já fizera na vida. Voei, volitei sobre o público, fazendo caras e bocas, fazendo coisas que aterrorizavam e deliciavam, que assustavam e comoviam as pessoas. Até mesmo um dos lupinos de guarda fez uma careta quando achou que eu iria cair e me esborrachar no chão, e respirou aliviado quando me viu presa apenas pelos pés ao arco que girava rápido demais.
“O assistente diminuiu a rotação até o aro metálico parar e em seguida o baixou, fazendo-me tocar o solo. Os aplausos eram ensurdecedores, e as pessoas estavam de pé. Demorei muito agradecendo, não por medo do que viria depois, mas por gratidão verdadeira. Até que, muito tempo depois, todos silenciaram para que fosse anunciada a última atração. E foi nesse momento que corri até meu treiler e dessa vez peguei uma manta cinza para me cobrir. Achei que os encontraria no mesmo local mas, ao abrir a porta, estavam todos ali, e também o Radamés.
“Convidei-os a entrar, afinal, estava frio de verdade e eles não eram tão imunes ao clima quanto eu — pelo menos era o que eu pensava. Conversamos durante uma hora mais ou menos, e acho que consegui pelo menos convencê-los de que eu era a única imortal da trupe. E que todos os demais eram inocentes e nada sabiam sobre mim. Tive que revelar como eu os enganava e como eu me livrava do trabalho e das rotinas diurnas. Tive que revelar como eu me alimentava: de quem, onde e quando. E essa foi a chave para eles terem me deixado em paz depois disso. Eles me revelaram o que eram e o que faziam, o que me fez experimentar um pânico nunca antes imaginado. Metade deles queria minha destruição, mas três pelo menos acharam isso desnecessário. Acharam que poderiam me usar para algo realmente bizarro: ensiná-los a destruir minha própria espécie. Bom, naquele momento, naquela situação, que outra escolha eu tinha?”
Pode ter sido alguma propensão para a ordem e a paz, ou a promessa que fiz de ajudá-los, ou algum outro motivo obscuro que não percebi... Ou pode ter sido minha performance, guiada por meu carisma e meu olhar hipnótico que os impediu de cumprir a missão da espécie. Não sei. Tudo o que lembro é que Radamés ficou muito mais presente na minha não-vida a partir daquele dia. E acho que é por isso que tu tá fazendo isso, não é, Beto? Tu acha que eu fiz algo com ele, não acha? Nós tivemos muitos encontros após aqueles dias, e éramos vistos juntos mais do que gostaríamos. Olha para meus pulsos, Beto... Isso é realmente necessário? Estão marcados e sinto dor. Estão em carne-viva, de certo modo... (Argh!!!...) (...) Poderia parar de me bater no rosto, por favor? (Sputl!...) Acho que alguns dentes já estão soltos... E tua mão tá coberta com meu sangue... (Argh!!!...) De novo... Ok, ok, não é meu esse sangue, eu roubei. Mas saiu da minha pele. Espera! Espera... (Splut!) Eu juro, eu não sei onde está o Radamés! Eu juro! Eu não o vejo desde 1982, quando ele me apresentou seu filho de três anos. Eu falei a verdade. Eu o conheci no circo, e andamos juntos por um tempo. Mas eu não o vejo há quase quarenta anos! (...) Hã? Quê? (...) Ah! Agora faz sentido! Agora entendo... Tu é aquele menino... Tu é filho dele! É mesmo necessário fazer isso comigo? Já falei que não sei onde ele possa estar... Por que não acredita em mim, Beto?!

Arrogância e Confiança - Crônicas de Siegfried Keller IV


É realmente aterrador!
Reconheço que tu, meu mestre e irmão, sempre me alertou sobre isso. Incansavelmente, diga-se de passagem! Sim, foram muitas as advertências, os conselhos... Eu sou testemunha disso!
Tu fica isento de qualquer responsabilidade. Tu já passou por isso alguma vez ou outra também, não?!
Pois é...
Aconteceu, mestre. Aconteceu.
Não posso desfazer. Não posso voltar no tempo e tentar fazer diferente... Não posso...
A culpa é minha, toda minha, somente minha. A autoconfiança será a minha destruição um dia. O excesso dela, dessa autoconfiança que me torna arrogante e estúpido... Isso me destruirá num âmbito bem mais físico do que está me destruindo espiritualmente.
É. Eu deslizei feio. E causei uma perda irrecuperável. Tudo aquilo que tu me ensinou, tudo o que construiu em mim... Parece que joguei tudo fora. De novo. Da primeira vez, eu busquei minha própria punição. Mas tive sorte, e ajuda. Muita ajuda.
Só que desta vez, diferentemente das três vezes anteriores, neste longo século de existência, eu não podia ter feito. Não podia ter deslizado. Não com toda a experiência, com toda a prática... Não podia! Não podia...
Tirar uma vida... E assim...
Sei que já faz algumas noites que aconteceu, mas sinto isso aqui e agora. Mais forte do que esperaria. Menos doloroso do que eu merecia... Mestre! Esse não sou eu. Esse...
Sim, sim! Entendo. Posso compreender, mas...
Não! Não sou merecedor. Deixa que eu purgue isso. Eu preciso. Senão vou enlouquecer. Vou explodir.
Lembra quando contei como ganhei aquelas medalhas de coragem? Quando contei as coisas que aconteceram lá? Falei sobre a gratidão e o alívio nos rostos daqueles homens feridos que puxei para fora daquele Panzer em chamas? E sobre as vidas que ajudei a preservar naquele bunker na Itália? Pessoas que voltaram para casa graças a algo que fiz? A primeira Cruz de Ferro. A Segunda Cruz de Ferro... Símbolos de algo que fiz – que nem de longe valem o ato, mas – que me lembram aqueles que ajudei...
Tirar vidas... Assim! Isso parece que anula tudo. Parece que me tira o direito de guardar as medalhas, de me lembrar daqueles homens que ajudei.
Matei pessoas sim, na Guerra, e até na minha própria guerra pessoal. Isso nunca foi problema. Mas o que me destrói é isso. É matar assim, desse jeito...
Hã?! Não sei... Não sei se...
Ok, vou dizer como foi. Embora isso vá doer.
Eu gostava dela. Gostava de verdade. Me agradava de fato estar com ela, ouvir a conversa dela... A solidão tem seu preço. Um alto preço, só não tão alto quanto envolver inocentes nisso. Eu pretendia... Talvez! Um dia... Quem sabe... Ela tinha qualidades. Ela era especial. Quem sabe?! Eu poderia... Hm...
Estávamos passeando na beira do mar. Ela estava chateada com algo ou alguém, não sei. Ela insistiu para eu levá-la para casa. Para a minha casa! No caminho, paramos num mercado. Ela levou uma bebida pra gente. Hnf! Tsc! O vestido esvoaçante, um pouco sujo de areia, mesmo assim fazendo-a parecer um anjo... O fato é que me deixei levar. Como tantos fazem. Como todos fazem. Um dia. Justo ela! Justo ela...
No meu refúgio, na penumbra, ela me fitou. Sentei-me do lado dela. E a beijei. Seu pescoço imensuravelmente quente, pulsante, latejante... O aroma me chamando... a sede.
A sede.
Autoconfiança.
Um imbecil que ama, mas que esquece dois pequenos detalhes. Um, ela está viva e pulsante. Dois, alimentar-se! Ahnf!
... Teria feito toda a diferença...
Quando dei por mim, acordei de um sonho doce. Muito doce. Ela jazia fria em meus braços. Branca. Muito branca e fria. Vazia. Sem vida. Sem luz, sem nada...
Imagina meu ser despedaçado. Minha consciência inconsciente do que fizera... Não sei como tive tontura, se não tenho nervos; nem como tive enjoo, se não tenho estômago; mas o sangue em meus olhos me lembrou que sim!, que eu posso sofrer! E que eu vou.
O corpo ainda está lá, onde o deixei. Não tive coragem de fazer o que outro qualquer de nós faz nessa situação. E é por isso que preciso da tua ajuda, mestre. Faz isso por mim?

Crônicas de Gabriel Diniz II

"Quisera eu poder controlar isso, minha querida...
Ah, quisera eu! Me perdoe! Ahhh... Ohhh! Lamento... Isso não vai me matar. Apenas causa uma dor incômoda, mas você sabe disso. Essa adaga não pode me ferir seriamente... Isso apenas me causa mais sede... Meu coração morto agora sangra... Mas não mais física do que sentimentalmente.
Me perdoe! Eu me excedi, confesso... É esse meu ciúme incontrolável, que me segue através das eras, e que tento, mas não consigo superá-lo.
Vá, minha querida... Vá! Corra para ele. Abrace-o forte, como se não houvesse amanhã! Pois não haverá mesmo. Haha! Não para ele, e você não pode mudar isso.
Em seu ódio, você esbravejou que deseja que eu sofra... Gritou que me quer sofrendo através dos anos... Sim, eu sofro!
Você deseja torná-lo um de nós. Você o quer, você o ama. Ah, criança... Se soubesse apenas um milésimo do que eu sei! Você não viveu o que eu vivi!
Ahhh... De novo?! Haha! Assim, de meu peito se esvairá toda a minha razão, todo o meu autocontrole...
Isso, chore, minha fada... Chore, desabafe, ponha para fora esta dor!
Lamento. Eu não posso fazer nada, a decisão não é minha. Você o quer, então aproveite o tempo que ele ainda possui. Depois, será tarde...
Como?! Quer que eu sofra para sempre?! HahahahahahaHaha! Deixa eu te dar uma aula sobre o que é sofrer! Deixe que eu lhe antecipe um pouco do que está porvir.
Imagine, minha musa, viver eternamente. Parece atraente, não? Parece um bom negócio, principalmente em um mundo de pessoas egoístas e vaidosas...
Não! Não se engane... Viver para sempre não é nem de longe um bom negócio.
Há pessoas que matariam por isso. Que trairiam, incendiariam, cometeriam as piores atrocidades por uma chance dessas... Estúpidos! Humanos estúpidos...
Tente entender, meu amor, o real significado de andar sobre a terra sem ter a noção do tempo.
Tente imaginar você, que ainda é jovem, como será atravessar os séculos dos séculos sem mudar em nada fisicamente. Tente imaginar gerações inteiras de pessoas com quem você se relaciona, gerações inteiras de vizinhos, amigos, inimigos, amantes... todas virando cinza num piscar de olhos... do dia para a noite. Você ainda mantém os sentimentos humanos, e isto é tanto uma bênção quanto o pior dos castigos.
Você verá o seu amante apaixonado de hoje mudar tão rápido, que quando passar o tempo de um sorriso, ele já não terá mais o mesmo rosto. Seu amor verdadeiro de amanhã, será pó depois de amanhã. E verá isso tantas vezes... mas tantas, que logo se acostumará. E ficará quase que insensível a isso. Quase, ou totalmente! Espero que não. Eu não fiquei. Não! Eu sofro! Eu cumpro o seu desejo, e sofro. Atrozmente... Lascerantemente... Brinhildr... Heidi... Brigite... Jeanette... Francesca, Constanze, Imália... Todas pó! Todas nada! E foram, cada uma delas, o grande amor da minha vida...
Vá! Vá para ele! Aproveite a noite. Mas lembre-se... Eu sei o que é sofrimento. E você, em questão séculos, em um piscar de olhos, também saberá na pele.
Só existe algo maior que nossa fome pelo sangue quente... A nossa inveja da mortalidade.

Crônicas de Siegfried III



Bem... Se você ainda insiste em falar no assunto... Ana, doce Ana... eu preferiria não lembrar. Tenho pesadelos - ainda - todos os dias. Talvez pra você isso seja apenas uma curiosidade. Ah, tantos curiosos... Mas são poucos os que suportariam. Pois bem, bebamos... A noite é longa, e a eternidade nos brinda (Não sei se gosto mesmo disso...). Beba, minha querida... Isso, beba...
"Amanhecia, e nós trocávamos a guarda. Eram o quê?... Seis da manhã, eu acho. Fui então posicionar-me no nicho da metralhadora." Aquilo era agoniante demais, pois sou claustrofóbico, como você já sabe... "Espiava por um buraquinho de nada, um retângulo estreito, e olhava o mar ainda escuro, tapado de neblina."
"- 'Que estupidez do 'Generalfeldmarschall' Hommel de mandar a gente pra cá, onde nada acontece... Todos sabem que os ocidentais tentarão uma invasão pelo 'Pas de Calais''. - Disse o jovem Kreter, um garoto empolgado, com apenas 17 anos, que queria participar da coisa toda...
"- 'Cala a boca e apronta esse café logo, novato!' - Gritou o velho 'Unteroffizier' Falke, o mais experiente dentre nós.
"Ouvíamos explosões ao longe, estampidos, vindos do interior... Achávamos que alguns 'Fallschirmjäger' inimigos haviam pousado por ali. Talvez espiões. Talvez treinamento, não sabíamos. O fato é que, dentre todos os nossos camaradas, ali, naquela praia abandonada e esquecida por Deus, tínhamos a mais absoluta certeza de que não veríamos nada! Nada além das notícias que chegavam pelo único e velho rádio, no qual tocava de hora em hora nossa canção preferida. 'Lili Marleen' nos fazia companhia o dia inteiro, e ajudava a aplacar o tédio. E aquela horrorosa sensação de confinamento.
"O dia aclarou um pouco, e não ligamos mais para as explosões. Então, olhei o mar, e algo não estava normal. Vi algo que avultava na linha do horizonte.
"- 'É só o mar que está agitado, 'meine Leutnant'... há muito vento hoje, e as ondas estão revoltas!' - Disse o velho Falke.
"Por instantes sosseguei. Mas logo olhei novamente, e vi algo inimaginável... Algo acima do que qualquer pessoa no mundo esperaria ver, vindo do mar... Algo que mudaria nossas vidas - e a própria história - para sempre!
O alarme soou, e os gritos dos camaradas ressoavam nas paredes de concreto do bunker, fazendo ecos ensurdecedores...
"Então, posicionei-me melhor no nicho e... Deus! Vi aquilo tudo vindo!
"Eram milhares, milhares e milhares de objetos, de todos os tamanhos, de todas as formas, vindos do mar. Navios cargueiros enormes, fragatas, canhoneiras, barcos menores e quase quadrados, como eu mesmo nunca vira... Todo o horizonte estava tomado desses estranhos objetos, que se aproximavam ameaçadores... Os tiros começaram a partir do nosso e de outros bunkers...
As metralhadoras MG-40, incluindo a minha, começaram a rasgar o ar sobre o aço que flutuava onipotente, ignorando nossa ofensiva... Paramos de atirar, mas não cessou o pânico. Apenas aguardamos.
"- É, parece que o 'Generalfeldmarschall' Hommel estava era certo, 'meine Leutnant'! - Gritou o jovem Kreter, tomado de adrenalina. Foi o momento em que me compadeci de seu futuro...
"Era 06 de junho de 1944, e ali percebemos o engano de achar que estávamos imunes à guerra naquele local.
"Estávamos atentos. O sol já iluminava toda a praia de Omaha. Então, quando os barcos menores pararam, juntos às barreiras submersas, ficamos em posição de espera. O ar parecia pesado, e a tensão acabava com nossos nervos. Os outros bunkers já atiravam com suas MG-40, menos o nosso. Nem ao menos estávamos acreditando naquilo tudo.
"Aí, tudo começou. As portas das lanchas abriram-se, e vimos milhares de soldados saindo de seu interior. Mas muitos, muitos mesmo, foram rapidamente cortados ao meio pelos projéteis que viajavam a 8 mil metros por segundo. Nossas MG disparavam 25 tiros por segundo, e despejamos tudo o que tínhamos em cima deles. Dali, eu não podia ver muita coisa, mas o que vi foi o suficiente: homens como nós, de carne, osso e sangue (muito sangue), tentando se aproximar da gente, atirando inutilmente contra nós, e sendo partidos em pedaços. Os víamos abaixo de nós, na praia, escondendo-se entre os ouriços, ou deitando-se no chão. Explosões os mutilavam. Médicos tentavam ajudar os caídos. Muitos nem sequer saíram da água...
Sei que este assunto te da sede, minha adorada... Sirva-se de mais... Ou prefere sugar diretamente de meu pulso? Eu deixo... Oh, sim! Eu continuo, se é o que quer...
"Foram horas e horas terríveis. Homens tentando sair da água, atravessar os 300 metros de areia, repletos de obstáculos, para chegar em uma área minada. Mas eu, naquela hora, não tinha pena. O medo era maior que a empatia. Por isso, continuei abatendo sem piedade todos os que eu enxergava. Como eu já disse, foram horas de agonia, dos dois lados. Uma batalha de nervos. E de aço!
"Perto das 10 da manhã, os navios deles começaram a bombardear nossos bunkers. Aí foi o fim. Aqueles de nós que não fugiram para o interior, eram abatidos ou ficavam soterrados sob toneladas de concreto. A esta altura, alguns estrangeiros já haviam passado a malha de arame farpado e os campos minados. Alguns de nós foram incinerados vivos, pelos lança-chamas infernais que estes demônios chamados humanos inventaram...
"Nós, eu e mais o meu grupo, resistimos o que deu, depois fugimos também..
"Falke foi procurar o comandante, e foi capturado dois dias depois, em 'Pas de Calais'. Ficou prisioneiro por meses, e foi abatido em uma tentativa de fuga heróica. O jovem Kreter foi alvejado em combate dois meses após, perto de Paris...
"Os outros, nem sei... Nunca mais os vi."
Bem, minha doce dama, creio que não suporto mais lembrar disso. Permita-me descansar de minhas dolorosas memórias agora, e bebamos... Bebamos que a noite é longa. E a vida incerta!

Crônicas Circenses de Ana Beatriz


>>>> "Deve ser por aqui. Ali! Estou vendo a entrada da mata. É uma vereda. Acho que não conseguirei passar com o Corvette por este caminho... Espero tê-los deixado para trás...
>>>> "Nossa! O céu está limpo e estrelado... Bem... Vou deixar o carro aqui mesmo. Afinal, eles sabem para onde estou indo...
>>>> "Precisarei caminhar tudo isso se quiser chegar no acampamento. Não, caminhar não... Correr! Aff! Esses mambembes, não tinham outro lugar para se meterem?
>>>> "Ai, porcaria! Sujei o sapato... Eca!, que lama pegajosa! Ai! Buracos!?
>>>> "Deixa-me ver... Hummm, é por ali. Vamos, Ana, Coragem! Depressa!
>>>> "Aqui tem uma trilha, aff, escorregadia e... Agh! Merda! Claro que eu tinha que cair, né?! Deus! Por que faz isso comigo?! Não tem graça...
>>>> "Ai, estes galhos, hunf! Essas trepadeiras engatando na minha cabeça...
>>>> "Affe, nem na metade do caminho...
>>>> "Hã?! Não...! Que cheiro é esse que... Não! Eles já estão aqui!? Droga, droga! Corre, Ana, corre... Agh... Agora não me acho tão imortal assim... Droga! Droga, porcaria... Se eles me alcançarem antes de eu chegar no líder, adeus imortalidade!
>>>> "Vamos... Estou chegando...
>>>> "Aaaaaaaahhhhhhh... Quase! Quase caio nesta garganta... Que palhaçada, Deus!, colocar um despenhadeiro aqui, para a gente cair sem nem ao menos vê-lo!
>>>> "O quê?! O que é isso?! Que ruído...? Não! Não... Não, não, não, não... Ui! <sussurro> parecem rosnados... atrás de mim... Hunf!
>>>> "Deus, Deus, Deus, prometo não te insultar mais, mas não deixa ser o que estou pensando! Não vou olhar! Não vou! Não vou... olhar...
>>>> "<Grito agudo>!
>>>> "Nossa! São quatro... Todos olhando para mim... Mostrando os dentes... <choro> rosnando... São enormes!, Deus! São enormes...
>>>> "Mas... Espere... <surpresa>! Aquele... do meio... é... é... meu filho!!!"

Crônicas de Siegfried II


>>>> "Droga mesmo! Preciso correr, preciso correr!
>>>> Porcaria! Ali! Afe! Argh! Pronto! Aqui em cima ninguém me vê... Foi por pouco... Esta sacada velha e condenada veio bem a calhar! Dois Fuscas, uma Kombi, uma Veraneio vascaína e uma cor de oliva! Tudo isso por uns poucos pés rapados?! Sinceramente, espero que o policial Tenório e aquele demônio do Fleury morram lentamente, mas não será hoje. Hoje não dá, eles estão em bom número, e daria muito trabalho. Sem contar que chamaria muito a atenção. Seriam uma comida muito ruim, azeda e suja! Epa! O que é isso?!
>>>> Parece que pararam os carros na rua de cima e estão por aí a pé... Não!
Isso é tentador. Mas preferiria, hoje, apenas fugir.
>>>> Lá... Terno branco, o demônio... Delegado Fleury, ainda nos veremos a sós!
Vou enfiar meu punho pelo teu traseiro e deixar uma granada lá dentro. Ou talvez eu te meta um arame pela uretra, e o aqueça com um isqueiro até que o metal fique vermelho... Epa! Alguém está escalando o poste da placa até aqui... Acho que me viram, ou ao menos perceberam alguma movimentação aqui em cima...
>>>> Desgraçados... Três anos atrás mataram covardemente meu contato da ALN - ninguém menos que seu chefe, o Marighella. Pô, eu gostava do cara! Era um baiano arretado e valente.
>>>> Pronto! Está morto! Policialzinho estúpido, achou que poderia me pegar? Agora eu tenho uma MP40 alemã carregada! Kkkkkkkkk. Mas com essa calça cor de laranja aí você vai chamar muito a atenção. Preciso te esconder por aqui mesmo, deixa ver...
>>>> Pronto!, aqui! Bem, não vou beber de ti porque vejo que tem alguns vícios chatos. Não gosto. Prefiro aquele lá, sozinho, descendo a rua por baixo das árvores. Um militar, eh... PE! Jovial e até um pouco simpático. Sinto pena da tua mãe... A coitada pensa que seu filho está seguro porque é militar, num país em que os militares mandam... Pobre senhora. O rapaz tem bom porte, parece não ter vícios... Vai ser uma experiência nova. 'Das ist eine leckere Frücht'! Ninguém mais à vista, só as árvores com suas folhas balançando ao vento. Silêncio... Agora... Vou saltar em cima dele... Unfh! Calma, guri! Hummmm! Hummmm... Af! Delíciaaa... Secou, pobre soldadinho. Tenha uma boa partida. Mas quem não terá uma boa partida será aquele palhaço de terno branco. Nem o Tenório. Estes eu vou matar tão vagarosamente quanto eles torturaram a Maria e o Alceu! Isto eu garanto!
>>>> Ótimo! Uma DKW parada. Vou pegá-la emprestada. Amanhã, deixo-a em frente ao DOPS, com um bilhetinho. Hehehehehehhe. 'Die Nacht ist Jung'!"

Crônicas de Gabriel Diniz


>>>> "Bebei, querida Carlota! Bebamos! É muito bom estar aqui novamente, após tantos meses... E digo que é deveras maravilhoso estar diante de vós aqui nesta vossa aconchegante casa. Convosco regalar-me-ei por breves e mágicos instantes, bebendo e ouvindo as novas desta tão amada terra, minha tão cara e amada Villa Rica, que sempre levo ardendo junto ao peito, por onde quer que eu perambule. Já deveis saber, senhora de minh'alma, que meu prestimoso e inflamado amigo está preso, mas sabei também que pretendo reverter tal desagradável situação com minha pouca influência junto ao Governo Geral, lá no Rio de Janeiro, para que o bom Joaquim seja perdoado, e que todo esse 'mal entendido' seja esquecido. Pelo menos, até nos fortalecermos novamente. Isso, minha fada... Bebei! Agora deitai vossa adorável cabeça aqui, sobre meu pobre e atrofiado coração. O caríssimo Gonzaga, nosso desembargador também está em apuros. E não gosto de ver colegas poetas em apuros. Já o Cláudio Manoel, este não me preocupa. Sua família é influente o suficiente para que sua pena seja comutada em algo mais suave...
>>>> A noite está diferente, senhora! Está bela e assustadora. Talvez sejam os acontecimentos, não sei precisar... Contudo, há algo de tétrico na brisa que sopra da janela. Permiti que vossa escrava a feche, por obséquio!... Sim... Sim, obrigado, Cibele!
>>>> Agora podes se recolher. Doce Carlota, as coisas não andam como planejamos.
>>>> E pensar que seria tudo diferente. Seria tudo tão mais fácil para nós!
>>>> A derrama inflamaria o povo, e este estaria ao nosso lado. Enfim... Teremos que esperar. Infelizmente, não posso me demorar. Acabo de perceber que preciso mover algumas peças... Mas não penseis vós, meu anjo renascentista, que entre estes anjos barrocos, tão feios, como Mestre Antônio os faz, apesar de seu mal doloroso, não há espaço para o requinte. Saberíamos transformar esta terra de brutos em algo jamais visto na saturada Europa. Faríamos isso e muito mais.

>>>> Bem, preciso sair, hoje não me resignarei a manusear a pena nesta solitária mesa, sentindo o silencioso carvalho sob meus punhos... Hoje irei à taberna, perscrutar por aí, a saber das notícias da capital sobre o que pretendem fazer com os prisioneiros. Espero sinceramente poder, e a tempo, ajudar nosso bom alferes, o mais autêntico dos homens nesta bruta e bela terra de ouro e sangue."

Crônicas de Siegfried



>>>> Crack! É o som que escuto sob a sola das velha botas, enquanto ando por essa rua cinzenta nesta noite deserta. Silêncio! Tudo o que ouço. Exceto pelo estalo: crack! das folhas secas caídas das árvores centenárias. "Esta parte de Salvador é calma, sombria e até mesmo agradável", diria Gabriel. "Lugar triste", diria Amanda. Nossa, não os vejo há tempos! Faz frio. Mas não consigo, nem me esforçando, sentir nada além do toque do vento em minha pele. Do meu lado direito, um muro velho, cedendo, cheio de rachaduras. À esquerda, árvores, e uma rua de pedras irregulares... Nem viva alma! Entretanto, congelo ao ouvir uma voz me chamando: "Siegfried"... Olho para todos os lados, e nada... "Siegfried!", escuto novamente. Percebo então que esta voz, baixa e longa, vem de minha própria mente. E ela fala: "Tun dies... Streichhölzer und Benzinkanister!". Imediatamente paro e olho ao redor novamente... Noite, escuridão, nada mais! E, com um embrulho no estômago atrofiado, reconheço a voz - Leutnant Kreter, o oficial fuzilado por ajudar sua namorada ucraniana a fugir para a Suíça. Isto está tão vivo em minha memória. Sim, 25 de março de 1944. Mal fazem trinta anos. Pronto, cheguei em minha humilde morada. A casinha é jeitosa. Por fora, parece totalmente abandonada, exceto pelas cortinas novas aparecendo por trás da basculante de vidro trabalhado... Não é bom que pensem que está abandonada. Alguém pode ter a infeliz idéia de querer morar ali. Seria um choque me encontrar em meu confortável esquife, e mais ainda pra mim - se isso ocorrer durante o dia! Agora estou na salinha aconchegante, simples, e ligo a tv. A lâmpada incandescente amarela, pendida do velho e sujo fio, irrita minha visão, até que me acostumo. Na TV, as mesmas mentiras de sempre, atrás do vidro convexo, alimentado por válvulas parecidas com esta lâmpada. Estou alimentado. Ela saiu satisfeita, agradeceu e tudo. Mas seu beijo nem se compara ao de Amanda. Nem em parte... Bem, vou dormir agora. Ontem houve tiros e correria - a polícia perseguiu alguns comunistas aqui por perto - vi seu Fusquinha vascaíno correndo pela rua, atrás de um Corcel verde-claro velho e maltratado. Hoje, felizmente, paz! Já já vai amanhecer. Vou dormir e espero não sonhar... Porque se sonhar, será com ela... Sim! Eu a estou vendo diante de mim... "Gute Nacht, meine Liebe!"

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