segunda-feira, 6 de junho de 2011

Dragões Mutantes - Capítulo 03

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Capítulo 3: Carnaval em Veneza
Cena 1: Reunião de Família
1º de maio de 2000
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>>>> Estávamos na estrada, rumando para o Rio de janeiro. Viajávamos na parte traseira de um caminhão Ford do Exército. Mesmo com a cobertura, a barulheira do motor e os solavancos impediam qualquer conversa no decorrer do caminho. No antigo Campo dos Afonsos há a Base Aérea de mesmo nome. De lá, partiríamos para o Centro de Treinamento Ninho das Víboras 1 (CTNV 1), que fica em algum lugar inóspito de Minas Gerais, entre Montes Claros e o Rio São Francisco, tendo a leste a Serra do Espinhaço e ao Norte a Chapada Diamantina, na Bahia. Chegamos à Base, e Diego riu satisfeito:
>>>> ― Desta vez, vocês se lascaram! O Cel. Mendes conseguiu para transporte um Bandeirante exclusivo, que pousará numa picada aberta junto ao CT, apenas para levar a carga e os instrutores. O que quer dizer, é que vocês vão pousar junto com o resto dos instrutores, pois nem todos são PQDs. E aí, como vão sair desta?
>>>> Kami, Miguel e eu nos entreolhamos. Deixa correr, Diego!
>>>> Decolamos. Conversamos, rimos, brincamos. E, quando o oficial co-piloto foi até a parte traseira onde estávamos, disse:
>>>> ― Podem se preparar!
>>>> Miguel, Kami e eu, muito rapidamente, tiramos nossos pára-quedas das enormes mochilas, e nos equipamos. Diego, de “rabo de olho”, nos observava. Kami olhou para ele, e disse satisfeito:
>>>> ― Diego, vou te dar uma dica: fazer amigos por onde se vai pode determinar muita coisa na sua vida, e até mesmo salvá-la. Por isso, garantir boas relações por onde se anda, além de ser útil, pode garantir, inclusive, a manutenção de uma vaidade!
>>>> Todos rimos, e Diego fez “cara de vencido”, rindo também. A porta abriu, e saltamos sobre o CTNV 1.
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Cena 2: No Ninho das Víboras
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>>>> Pousaríamos na clareira de pouso do Bandeirante, onde já nos esperava a turma, dez elementos, entre civis e militares. Estavam todos sentados ao estilo militar, com as pernas cruzadas e os punhos agarrados, à mercê das ordens dos poucos que estavam de pé. Havia ali os anfitriões, oficiais responsáveis pela área, que fariam no mais a segurança, enquanto estivéssemos em exercícios na selva. Reconhecemos aquela formação ainda lá do céu.
>>>> Pousamos, recolhemos os velames, e andamos em direção ao “chefe”. Este fez a continência, cumprimento padrão entre militares, e que também é feito para civis. Diego retribuiu, pois estava fardado. Nós outros, respondemos todos com um simples e educado “Boa tarde!” kami dirigiu-se ao homem com humildade:
>>>> ― Senhor Capitão, esperamos não estar atrasados.
>>>> ― Sejam bem-vindos, Delegado! Agentes! Sou o Capitão Maurício, da 1ª Brigada de Selva. Tenente, à vontade!
>>>> Ele disse isso para Diego, que estava em posição de sentido (natural, pois o homem era capitão, e Diego, um tenente; ambos militares).
>>>> ― O senhor veio de longe! ― Disse Kami.
>>>> ― O que precisarem, avisem-me! Estarei na cabana de operações de apoio. Nós cuidaremos da segurança de toda a área, policiando o perímetro externo para que não tenhamos surpresas durante o treinamento. Por outro lado, qualquer problema com disciplina, aí, tá nas mãos dos senhores! Não dêem trégua nem moleza para os alunos, sejam eles soldados ou oficiais... Estas são as recomendações do Comando.
>>>> O Capitão Maurício recolheu-se com seus três acompanhantes, e ficamos diante da turma. Quando o Capitão desapareceu das vistas dos alunos, ouvimos rumores entre estes, como piadinhas e risinhos. Alguém sussurrou algo como “olha o japa!”, referindo-se a Kami; outros reclamavam que “dois cabeludos seriam seus professores”. Com certeza um desses “cabeludos” seria eu; o outro, só poderia ser o Miguel, que mantém o cabelo em estilo alemão, dividido ao meio, e caído sobre as orelhas. Quando silenciaram, pois perceberam Kami silencioso e firme fitando-os, este diz em tom alto e claro:
>>>> ― Senhores! Percebo que há, aqui, muitos engraçadinhos! E os senhores talvez pensem que, pelo fato de eu ser um civil, um mero delegado civil, eu estaria abaixo do nível dos senhores! Acham que eu não sou bom o suficiente para ensinar a militares o que estes já sabem há tempos, não é mesmo?! Naturalmente que me refiro aos novinhos, posto que os mais graduados não se deixam levar por piadas infames nem por babaquices, tão naturais aos jovens soldados, tão “sedentos por instrução”! ― Fez pausa, mas não houve resposta.
>>>> ― Vou dizer uma coisa para os senhores: Ninguém aqui será tratado como diferente! Ninguém! Todos estão no mesmo barco, portanto, todos estão “na Marinha”! Entendido! ― disse, mais alto e mais claro.
>>>> ― Sim, senhor! ― Todos os alunos gritaram de volta.
>>>> ― Senhores, levantem-se! ― (No que foi obedecido). ― Agora, o agente Gabriel, guerreiro do COT, um dos melhores combatentes da Polícia Federal, fará a chamada, e espero que os senhores se dignem a respondê-lo, e não a ignorá-lo, por achá-lo “cabeludo” demais! Os senhores me entenderam?!
>>>> ― Sim senhor ― Foi o brado geral.
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Cena 3: A Apresentação das Crias
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>>>> ― Atenção, ao meu comando, seus cães do inferno! Eu vou chamar apenas uma vez! O animal que não responder, será convidado a fazer a limpeza da latrina que vamos abrir lá mais adiante.
>>>> Ninguém riu. Puxa, quando eu servia, eu ria pra caramba dessas “deixas”. Chamei um por um, e estes se apresentavam gritando seus nomes e suas origens profissionais, bem como deram outras informações. Chamei o número um, e apresentou-se uma bela moça, que gritou:
>>>> ― “Zero-zero-um”, Adriana, 30 anos, Força Aérea Brasileira, Pára-SAR, 1º tenente, Baiana. Especialidade: Escalada e Rapel.
>>>> E assim foi:
>>>> ― “Zero-zero-dois”, Ricardo, 32 anos, Exército Brasileiro, Brigada Pára-Quedista, 2º sargento, fluminense. Destaque para: Táticas de assalto e combate urbano.
>>>> ― “Zero-zero-três”, Paulo, 36 anos, Polícia Federal, polícia da fronteira, agente, goiano. Sou bom em: Sobrevivência na selva.
>>>> ― “Zero-zero-quatro”, Fernanda, 26 anos, Polícia Federal, Polícia de alfândega, delegada, paranaense. Especialidade: investigação.
>>>> ― “Zero-zero-cinco”, Fiorelo, 27 anos, Marinha, Fuzileiros Navais, cabo, acreano. Entendo de explosivos.
>>>> ― “Zero-zero-seis”, Matos, 42 anos, Polícia Civil de São Paulo, Delegacia de Santos, inspetor, paulista. Negociações, e situações limite.
>>>> ― “Zero-zero-sete”, Keller, 40 anos, Força Aérea Brasileira, Infantaria, sub-oficial, mineiro. Explosivos.
>>>> ― “Zero-zero-oito”, Carlos, 48 anos, Polícia Civil de Minas Gerais, Delegacia da Mulher, inspetor, gaúcho. Armas e munições.
>>>> ― “Zero-zero-nove”, Nogueira, Polícia Militar do Rio de Janeiro, BOPE, 1º tenente, capixaba. Combate urbano.
>>>> ― “Zero-dez”, Bardini, Polícia Militar do Rio Grande do Sul, 17º BPM, Soldado, ítalo-gaúcho. Atiro com precisão.
>>>> Após fazer a inacreditável revista, estando todos em fila, olhei um por um. A “Zero-zero-um” era uma ruiva muito bonita e miúda; o “Zero-zero-dois” era um caucasiano forte e alto; o “Zero- três” era um mulato de tamanho médio e magro; o “Zero-zero-quatro” era uma linda loira de olhos azuis e cabelos cacheados, alta e magra; linda e delegada... Ou seja, problema! O “Zero- cinco” era mais baixo, mas forte, com a pele curtida de sol; o “Zero- seis” era um branco barrigudo; sabe Deus o que queria ali! O “Zero- sete” era um atleta, mas parecia acometido de soberba; o “Zero- oito” parecia experiente e sereno, era baixo, com cara de italiano; o “Zero- nove” era a mesma coisa que o “Zero-sete”, mas com a disciplina da “Zero-um”; porfim, o “Zero-dez” era o mais simpático, mas não parecia alguém que sobreviveria muito tempo sem conforto e tecnologia. Então, eu gritei:
>>>> ― Senhoras e senhores, sejam bem-vindos ao CTNV 1, o Centro de Treinamento Ninho das Víboras! A partir de agora, vocês são crias nossas, para se tornarem Víboras! O caminho será duro, pedregoso, e sofrido, portanto, lasciate ogne speranza voi ch’entrate!
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Cena 4: Os Dez Mandamentos
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>>>> Kami, em seguida, dispensou a turma. Todos foram para as barracas, sendo estas em número de quatro, e assim divididas: as duas mulheres dividiriam uma menor; os homens restantes formariam grupos de dois, três e três. Os que ficassem em grupos menores, para ser mais justa a divisão, ficariam responsáveis por guardar mais material nas barracas. A maior demonstração de comunismo perfeito está nestes exercícios militares.
>>>> Após trinta minutos de adaptação às barracas, todos entraram em formação novamente. Kami então deu a Diego outra missão: ler os dez mandamentos do CTNV. Este assim o fez:
>>>> ― Senhores, estes são os dez mandamentos deste centro, e devem ser seguidos à risca sob pena de expulsão:
>>>> ― “Um”: Aqui meus instrutores serão meus superiores temporariamente, não importando seu posto, seu trabalho, sua natureza; a eles devo minha obediência; a eles confiarei minha vida.
>>>> ― “Dois”: Meus instrutores e colegas me devem respeito, e devo o igual respeito a todos eles, pois somos uma equipe.
>>>> ― “Três”: Colegas e intrutores do sexo oposto não são opção romântica enquanto durar a fase do treinamento.
>>>> ― “Quatro”: Minha arma estará sempre ao meu alcance, devidamente segura, e em perfeitas condições de uso.
>>>> ― “Cinco”: Meu companheiro aqui é meu irmão de alma; não abandonarei meu colega sob quaisquer circunstâncias.
>>>> ― “Seis”: Não dedurarei meus colegas para fazer bonito.
>>>> ― “Sete”: Falar sempre a verdade, por mais absurda que pareça.
>>>> ― “Oito”: Nunca dormir durante o serviço de sentinela.
>>>> ― “Nove”: Respeitar o código da organização.
>>>> ― “Dez”: Não cantar nunca, jamais, músicas de Carlinhos Brown, Netinho de Paula, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Rocks nacionais ou aquelas músicas odiosas estilo “You’re beautiful” ou “New York, New York”. Descumprir este é passível de prisão e tortura.
>>>> Alguns riram, mas nem todos. Eu ainda fiz meu comentário, pois adoro me meter:
>>>> ― Senhores, e não senhoras, este recado é para vossas senhorias: ainda há pouco, lá perto das barracas, eu vi que alguns dos senhores, e não as senhoras, reuniram-se em grupo para confabular sabe Deus o quê! E enquanto a tenente Adriana, que é realmente uma bela baiana, além de competentíssima militar, ajeitava sua barraca, alguns babacas estavam praticamente babando enquanto a olhavam... Não é mesmo?! E eu ouvi alguém gemer assim: “Nossa Senhora!”
>>>> Silêncio. Ninguém disse nada... Continuei:
>>>> ― E, quando a senhora delegada (...) Fernanda... Uma moça muito bonita, e guerreira, por estar aqui... Quando ela passou perto dos senhores, o que foi que eu também ouvi? Eu ouvi novamente alguém grunhir: “Nossa Senhora!” E ela também deve ter ouvido...
>>>> Silêncio.
>>>> ― Bem, senhores: Nenhuma delas é Nossa Senhora! Garanto a vocês! Nossa Senhora é piedosa, o que não é o caso nem da delegada, nem da tenente...Portanto, eu não quero saber de gracinhas no meu campo! Entendido? Alguém tem alguma dúvida?
>>>> ― Não senhor! ― Todos bradaram, inclusive as mulheres.
>>>> Após meu recado, Diego aproveitou para tirar uma casquinha. Afinal, não é todo dia que se pode instruir pessoas hierarquicamente superiores “com toda essa moral”.
>>>> ― Senhores... Os senhores acabaram de ouvir os dez mandamentos instituídos da organização. Agora, eu tenho mais um para vocês. Este, precisou ser incorporado devido a uma incidente; e é o seguinte: Eu jamais atirarei em um alvo desconhecido, ou que eu não esteja vendo perfeitamente, pela simples suposição, mesmo que todos os indícios me levem a crer tratar-se de um inimigo. Os senhores entenderam?
>>>> ― Sim senhor! ― Gritaram.
>>>> Enquanto Diego apresentava a rotina diária para os novos aprendizes, eu e Kami nos preparávamos para o lazer; quero dizer: para o árduo, mas divertido, trabalho de recrutamento.
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Cena 5: Início do Carnaval em Veneza
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>>>> Aquele momento foi muito curtido por nós. Fazia tempo que eu não fazia aquilo despreocupadamente, sem o perigo nos rondando, como fizera nos meus tempos de militar. Ali, tínhamos a proteção do perímetro, e a qualquer alteração, seríamos alertados e auxiliados por muitos soldados. Estávamos livres para brincar de acampamento como se estivéssemos no nosso quintal. Ali, estrearíamos nosso material novo.
>>>> Kami vestiu seu uniforme de treinamento, negro, feito em material resistente a espinhos. Calçou os butis (coturnos militares) e ajeitou seus cintos. Eu vesti um uniforme idêntico, com uma diferença, porém: como sou muito calorento, cortei a calça fazendo uma bermuda; e a gandola eu substituí por um colete. Ao invés do buti, calcei um par de botas de alpinista, com canos médios. Junto a cada bota, amarrei uma faca de caça, com bainha de nylon. No cinto militar, prendi dois cantis de 900ml cheios d’água, na parte de trás; uma bainha com uma faca de mato de 40cm à direita; o coldre com a 9mm à esquerda; e dois bornais duplos, tipo pochete com dois “andares”, e com amarração nas coxas, um de cada lado. A cataná cruzada nas costas, acessível pela esquerda. Como sou ambidestro, dividi mais ou menos assim o material: O sabre, a pistola e uma das facas da bota para sacar com a mão esquerda; a faca de mato, o rádio (preso no colete) e as outras facas para usar com a direita. Na cabeça, pus um chapéu tipo “Brigada de Selva”, parecido com o de boiadeiro, mas com as laterais amarradas por cima. Kami observou que eu parecia mais um mateiro de primeira viagem que um experiente combatente. E ele parecia um ninja, todo de preto, com o sabre também cruzado nas costas.
>>>> ― Tu parece mais com o Miguel que comigo... ― Riu ele.
>>>> ― Tu parece mais com Diego que comigo. ― Brinquei.
>>>> Ele pegou sua prancheta de controle, e fomos novamente para o cenário. Ao me ver, Diego, muito engraçadinho, comentou com os alunos:
>>>> ― Senhores! Esta é a forma exata de como não se devem vestir aqui! Este é justamente o melhor exemplo de como não se apresentar na missão. E o motivo é bem simples: no mato, há tanto mosquito à noite, que a gente pode escalar o ar se apoiando neles...
>>>> Alguns riram. Eu também. Kami fez nova chamada e deu a cada um uma missão rotineira de acampamento, para se acostumarem a trabalhar em grupo, e manterem as mentes ocupadas e alerta.
>>>> A noite chegava, e os alunos jantavam no tapiri cozinha. Miguel, Diego, Kami e eu trocávamos informações sobre os planos de aula, quando começamos a ser incomodados por mosquitos. Ainda eram poucos. Mas logo iria escurecer. Andei uns metros capim adentro, e localizei um formigueiro que eu tinha visto durante a tarde. Com a caneca, raspei a parte de fora, tirando um pouco do material. Um formigueiro é feito, pelas formigas, com uma matéria prima um tanto exótica: cocô de besouro, ajuntado e agrupado ao redor da colônia. Tirei o suficiente para não prejudicar muito o abrigo, e evitando colher formigas soldados junto. Em seguida, retornei para perto do grupo, que já reunia o pessoal ao redor da clareira. Todos já estavam sentados e à espera da próxima instrução. Pedi a Kami que me deixasse dar uma dica para os alunos. Ao que ele, já rindo, concordou, eu comecei:
>>>> ― Senhores... Agora vou dar “um bizú” para vocês. Os senhores percebem que os mosquitos do Diego ― (alguns riram) ― já estão nos rodeando... Quem quiser, faça como eu.
>>>> Eu abri o cantil, e derramei um pouco de água na caneca, que continha o material do formigueiro. Em seguida, com os dedos, mexi e misturei tudo, formando um barro. E passei tranqüilamente esse barro no meu rosto, com os três dedos maiores, sempre do nariz para as orelhas. Tentei cobrir o máximo que pude, mas sem exageros.
>>>> ― Senhores, o barro é mais que uma camuflagem... O barro é mais que hidratante... Ele irá nos proteger dos mosquitos e ao mesmo tempo do calor. Digo isso porque, ao umedecer-se com o suor natural, ele o esfriará. Barro não é sujo! Barro não é nojento! É parte da nossa Mãe Terra e de nós mesmos.
>>>> Passei aquele barro por todas as partes de pele exposta que eu tinha: rosto, braços, pernas, pescoço e mãos. Em seguida, Kami, que fizera o mesmo, completou a dica:
>>>> ― E outra dica boa: se os senhores utilizarem, assim como Gab está fazendo, a terra de formigueiro, a proteção será maior. Na terra de formigueiro, naturalmente, há muito ácido fórmico, o que manterá muitos insetos longe, posto que formigas são predadoras muito temidas.
>>>> ― Venham, que vou mostrar como se faz... ― Disse ele.
>>>> Andamos até o formigueiro, que descobrimos estava abandonado, e todos retiraram um pouco. Todos seguiram a orientação.
>>>> De fato, naquela noite, os insetos só incomodaram o Diego, que insistiu em usar aquelas tinturas prontas, vendidas em lojas, para camuflagem. A partir dali, ele seguiria nossas dicas.
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(Continua...)
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(Quinta-feira, 13 de janeiro de 2011. 22:43.)
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(Registro: RGM-4597-20110529)

Dragões Mutantes - Capítulo 02

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Capítulo 2: O Monte dos Condores
Cena 1: Breves Momentos
28 de Abril de 2000
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>>>> A chácara parecia imensa, e a escuridão já caía sobre os imensos ciprestes e eucaliptos, que balançavam ao forte vento. Um velho caminhão Ford da FAB, com o logotipo “MAer” na porta, nos resgatou numa clareira pouco abaixo do sítio e nos trazia para a sede. O pernoite aconteceria ali, naquela bonita casa sede, e tínhamos pouco mais de hora e meia para nos preparar. Ao entrar na casa, percebemos o quanto era aconchegante por dentro, além de bela, e ficamos meio sem jeito. Havia no local dois tenentes da Marinha em traje de gala que faziam a guarda interna. Foi quando, pela janela, notamos alguns soldados postados em pontos estratégicos do lado de fora. Contamos mais de doze. O Cel. Mendes veio nos receber, cumprimentou-nos cordialmente, e pediu que ficássemos à vontade ― “mas sem tirar as roupas” (...) ― até a hora da reunião. Claro que isso fora uma piada.
>>>> Espiando um pouco os grandes e espaçosos cômodos, sem contudo “mexer” nos objetos, encontrei uma pequena salinha onde jazia um lindo piano alemão de madeira negra, com uma banqueta empoeirada guardada sob o corpo, e sem objetos sobre a tampa. Algo se revirou dentro de mim. Eu não queria causar transtornos, mas também não podia agüentar aquilo. Era tentação demais.
>>>> Algumas pessoas já esperavam na sala principal, entre elas vários militares e o superintendente da Polícia Federal. Alguns também falavam espanhol, como pudemos notar. Como a sala principal ficava um pouco afastada daquela saleta, separada por duas paredes e um corredor, pensei que não teria problemas.
>>>> Sentei-me na banqueta, abri a estreita tampa que cobria as teclas, dedilhei delicadamente para testar a afinação, e reparei que o piano estava afinado. Então, tomado de uma força maior que a vontade exterior, comecei a tocar uma música muito conhecida, uma peça para piano que aprendi havia tempos, um Nocturne, Opus 9, número 2, de Chopin. Comecei suavemente, mas no decorrer da execução, fechei os olhos, e quando dei por mim, tocava como se estivesse sozinho numa ilha. Parecia que eu estava mesmo em outro lugar. Quando eu estava na parte final, escutei alguém dizer: “― É Chopin!”, e olhei para a porta. Estavam ali Kami, Miguel, Diego, Cel. Mendes, e alguns mais. Como todo aluno de música em geral é desconfiado, pensei logo que tivesse cometido alguma gafe. Mas logo lembrei-me de que, apesar de não ter a partitura ali comigo, eu a sabia de cor, e já tocara várias vezes esta peça sem lê-la. Um dos oficiais generais, o Brigadeiro Flores, que eu não conhecia pessoalmente, mas já o vira muitas vezes, brincou:
>>>> ― Olha aqui, ô novinho! Se tu não tocar Mozart, eu vou me queixar com o superintendente, Certo?
>>>> ― Sim senhor! ― Respondi, sem saída, e pensei “o quê tocar?”...
>>>> Felizmente, houve aplausos, e a reunião começaria em poucos minutos. Alguém avisou que não daria tempo. Ah! “Salvo pelo gongo”. E sem repreensões por eu haver devassado aquela parte da casa que não seria utilizada para a reunião. Parece que todos relaxamos. É o efeito da música na alma dos mansos e dos guerreiros.
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Cena 2: A Versão Oficial
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>>>> A enorme sala de estar, com seus doze por oito metros, estava quase cheia. Havia ali um grupo destacado, mais ao centro, composto de distintos senhores, uns com óculos escuros, outros com a cara limpa, mas todos com aquela “cara de dor de barriga”; e todos sussurrando entre si, lançando olhares ao redor, como que contando os presentes. Poucas vezes me senti tão pequeno. Pelo simples fato de não conhecer a maioria deles, me senti completamente descartável. Um deles, em traje civil formal, reconheci como sendo um oficial general, lá dos meus tempos de FAB, o Tenente-Brigadeiro-do-Ar que usava o codinome Flores (se eu mencionasse o nome verdadeiro dele, provavelmente não poderia prosseguir contando os fatos). Um outro, da ativa do Estado Maior do Exército, vestia normalmente seu traje de gala militar. Ambos mantinham-se discretos, com seus óculos escuros, vez por outra cochichando qualquer coisa sobre um de nós. Boatos corriam de que um daqueles distintos caladões, dos que ficavam nos flancos da nata militar, era canadense; e que outro seria americano; e outro, ainda, Porto Riquenho. O Doutor Chandler chegou pouco antes do último convidado, o Major Henrique, do Exército Mexicano. Lá fora, um efetivo de uns trinta ou quarenta soldados da PE guardavam a chácara, para impedir que bisbilhoteiros aparecessem, mas sem saber sequer o que estava acontecendo. Quando enfim decidiram iniciar o pernoite, nosso conhecido Cel. Mendes tomou a palavra, enquanto dois oficiais da Marinha, uniformizados como se fosse para um desfile, chaveavam as duas únicas portas. Disse o Coronel:
>>>> ― Senhoras e senhores, distintos membros do Conselho Condor, caros companheiros de Missão! Boa noite! Sejam bem-vindos e bem acolhidos entre nós, irmãos de missão! Estamos aqui hoje, unidos e confraternizados em uma causa comum, mas não é por capricho ou por motivos banais, destes que acarretam gastos e que têm pouca utilidade efetiva para o progresso de uma Nação. Estamos aqui, sim, para salvar nossas populações e terras de um mal que parece não afetar muito nossos ‘amigos’ dos países ricos; que parece ter sido criado para embaraçar os adversários, enquanto o ‘dream team’ segue na conquista de suas metas; que apareceu convenientemente para afetar a economia de determinadas sociedades; que pode ser fruto da irresponsabilidade insana de entidades que não têm o menor escrúpulo em galgar suas experiências ‘pisando o jardim do vizinho’! Isso, senhores, nós não permitiremos!
>>>> Fez uma pausa, passou um lenço na boca, e continuou:
>>>> ― Apresento-vos, senhores, a cúpula nomeada, e altamente secreta, do Conselho Condor. Seus membros, indicados pessoalmente pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Doutor Fernando Henrique Cardoso, receberam a missão de desvendar e sanar o problema antes que piore mais. Apresento-vos, agentes, vossos superiores, e insisto, pela “enésima” vez, que trata-se de informação secreta nível três.
>>>> ― A meu lado, está o doutor Chandler, cientista biogenético canadense, que vive no Brasil desde 1986. Este, é o Tenente-Brigadeiro-do-Ar Elano da Rocha Flores. Este, é o General de Exército Miguel Santos Faccini, do Estado Maior do Exército. Este outro, é o Major Henrique Dias, representando o Exército Mexicano, com seus oficiais auxiliares. Este, é o policial Ernesto Mendes, com alguns de seus colegas, da Polícia de San Juan, em Porto Rico. O superintendente da Polícia Federal Brasileira todos já conhecem...
>>>> Toda aquela gente parecia pouco à vontade, fosse pela natureza tão secreta da missão, ou pela timidez, diante de tanta diversidade ideológica em um espaço tão limitado. Ou, quem sabe... o medo... O Doutor Chandler era um sujeito alto, magro, com cara de alemão; o Brigadeiro Flores era mais baixo, também magro, totalmente grisalho, e parecia mais um agente secreto com aquele terno preto; o General Faccini, em seu uniforme oliva, com os óculos escuros, parecia sondar a todos, talvez à caça de um possível espião... ou, quem sabe, de um “boca grande”. O mexicano participava calado, mas atento; e o Porto-Riquenho, dentre todos, parecia o mais experiente no que se referia a “conhecimento de causa”; ou melhor: do inimigo.
>>>> O Cel. Mendes prosseguiu:
>>>> ― Senhores, minha missão aqui era apresentá-los; agora, passo a palavra ao excelentíssimo senhor comandante em chefe do Conselho, nomeado pelo próprio Presidente; Ministro extraordinário de Defesa e Segurança; o Contra-Almirante reformado, Senhor José Sabino de Medeiros. Após, falará seu secretário, o atual Superintendente da Polícia Federal, que distribuirá suas próximas missões. Excelência, por favor...
>>>> O Contra-Almirante tirou os óculos, e franziu seus já muito experientes olhos azuis, como quem quer parecer franco, e iniciou:
>>>> ― Nobres senhoras e nobres senhores da Missão: a tarefa que temos é imperiosa e séria! Nada temos a ganhar se falharmos!
>>>> ― ‘Por quê?’, vocês se perguntam; ‘Por que temos que limpar a caca dos outros?’. Eu respondo: porque jogaram no nosso terreno! Eles argumentam, justificam, dizem que vão cuidar disso, que vão resolver aquilo, que ‘não vai mais acontecer’! E tudo o que fazem é nos ludibriar!
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>>>> “Agora, que assumimos, não vamos desistir! Vamos seguir em frente, e limpar a mancha que deixaram no nosso quintal! O Conselho Condor, apesar desse nome que nos remete a infames acontecimentos passados, nada tem de ditatorial! Nada tem de repressivo! É a única arma capaz de deter a insanidade daqueles que pisam nossas bandeiras, e que riem dos nossos problemas, enquanto entram e saem de nossos territórios, como se sua casa fosse, para testar suas experiências macabras! A natureza da missão é esta: destruir todas as amostras de tais experiências que porventura surgirem em nosso território.
>>>> “Eis, senhores, nossa Missão:
>>>> “Há cinco anos atrás, como todos aqui já sabem, na bela República de Porto Rico, um fenômeno bizarro acometeu as populações rurais dos arredores de San Juán.
>>>> “A mídia internacional pouco divulgou, e se o fez, no mais foi por falta de assunto. Não interessou a comunidade internacional o que parecia ser algo com uma provável explicação lógico-racional próxima de ser conhecida.
>>>> “Em 1986, no México, ocorreram casos semelhantes... Novamente, com pouca divulgação jornalística, pelo menos aqui no Brasil.
>>>> “Porém, em 1997, chegam a conhecimento público os casos ocorridos em fazendas nos Estados do Paraná, de São Paulo e de Minas Gerais. A estranha forma como animais de criação e domésticos eram encontrados, sem qualquer sinal de sangue, internamente ou externamente, despertou a atenção de todo o País, principalmente da mídia, para o fenômeno conhecido nos Países latinos como o fenômeno “Chupacabras”.
>>>> “Como todos aqui sabem, a grande característica do fenômeno, além de aparecerem os corpos dos animais completamente isentos de sangue, é o silêncio com que o predador ataca e foge. Sabem como a criatura se desloca com uma rapidez e silêncio sobrenaturais. Sabem que é forte e resistente. Sabem do que se alimenta. E sabem que não há apenas um exemplar!
>>>> “Sei que todos aqui estão cansados de saber como funciona a operação de caça e destruição, ordenada e apoiada pelo nosso presidente; sabem da necessidade imperiosa de discrição em nossas operações; e entendem que nem suas famílias devem saber do que se trata sua missão!
>>>> “A prioridade, máxima, é a destruição e a captura destas criaturas abatidas, e jamais vivas! Quem as quer vivas, vocês sabem, é nosso inimigo. A missão de descobrir a verdadeira natureza destes seres bizarros também é imperativa, e é nossa prioridade no Conselho Condor. Porém, os senhores, apesar de fazerem parte do Conselho como um todo, têm ora outra missão. Cumpram-na! Vocês, Víboras, que são nosso braço armado, têm que priorizar a caça e o abate. O esquadrão Corvo resgatará os restos e os levará para o complexo. Não se percam em preocupações acerca da origem do problema, ou do destino das carcaças: há equipes especializadas para isso. Tratem, sim, de garantir que a missão que lhes foi confiada tenha sucesso! E, quando o perigo não mais rondar nossas fazendas e criações, aos senhores será dado o crédito. Temos gente especializada trabalhando em todas as etapas do processo. Inclusive, sobre isso, tenho novidades:
>>>> “Até agora, as equipes de campo brasileiras têm trabalhado da seguinte forma: cada uma das cinco equipes de campo, formadoras do Conselho, estava assim dividida: quatro grupos Víbora, de combate direto, com quatro integrantes cada um; e quatro equipes Corvo, de apoio, cada uma com quatro agentes de “limpeza local”. As equipes de biozoólogos, cientistas e técnicos, posso dizer, são suficientes. Mas, sendo tal informação de segurança nível quatro, seu número e os nomes de seus integrantes não serão revelados.
>>>> “Pois bem, eu disse que teria novidades... e são duas!
>>>> “A primeira é que, a partir de agora, cada grupo Víbora terá, junto em campo, um agente Corvo, que fará seu “trabalho” na mesma hora, à medida que as criaturas forem sendo abatidas.
>>>> “A segunda, e mais importante, creio eu, é que alguns dos senhores serão convocados ainda hoje para uma missão de máxima importância: treinar, educar e preparar uma nova turma de Víboras. Os candidatos foram selecionados com todo o cuidado por uma comissão formada por oficiais da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, e da Polícia Federal. Foram escolhidos a dedo soldados e agentes integrantes da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, das Polícias Federal, Estadual, e Militares Estaduais, em vários Estados, para integrarem a nova força do Conselho Condor.
>>>> “Felizmente, ainda não houve baixas entre nossas equipes... Ainda! Mas faz-se necessário o treinamento e a incorporação de novos agentes para garantirmos o sucesso final da operação com segurança e eficácia.
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>>>> “Alguns dos senhores já participaram de outras missões em campo, desta natureza; e, segundo fui informado, tiveram proveitoso sucesso. Quero agora, como bom comandante, aproveitar as experiências e conhecimentos destes destacados agentes, para formar a próxima geração. Não que os senhores serão dispensados de suas atribuições, muito pelo contrário, sua participação em campo será decisiva. O fato é que, segundo nossas análises estratégicas, os incidentes ocorridos nos últimos meses cresceram consideravelmente; e têm mostrado que o efetivo de agentes já não supre o número de ocorrências. Este número, senhores, continua o mesmo de abril de 1999, quando da criação do Conselho Condor e dos grupos Víbora e Corvo. Dezesseis agentes Víbora por equipe, totalizando oitenta agentes para todo o País; e o mesmo efetivo de agentes Corvo estão em ação, num total de cento e sessenta pessoas em campo. Por isso, pelo crescimento devastador de exemplares inimigos, necessitamos aumentar nossos efetivos de combate direto. Afinal, os senhores sabem: de que adianta uma central bem equipada com computadores e cientistas, se não dispomos de agentes de combate direto para fazer o trabalho maior. Um carro não anda sem as rodas.
>>>> “Até agora, os senhores foram simplesmente fantásticos. Espero que seus alunos também o sejam. Quanto aos que ficaram fora da lista, e não tornaram-se instrutores ainda, saibam que não é demérito. É porque outra missão, mais dura, os aguarda: continuar fazendo o que faziam!
>>>> “Agora que sabem o que os espera, fiquem atentos aos nomes chamados. Aqueles que não forem selecionados para serem instrutores, treinarão normalmente em suas unidades, e retornarão a campo tão logo sejam chamados! Bom serviço a todos!”
>>>> Dizendo isto, o Contra-Almirante Sabino se retirou discretamente, pelos fundos, acompanhado de alguns oficiais. A reunião ainda foi longe. Falaram o Superintendente da PF, o Dr. Chandler, e os convidados do México e de Porto Rico. Nada que não soubéssemos, nenhuma novidade, apenas repetiam o que já fora dito. Mas o objetivo destas reuniões de pernoite é apenas o de encorajar a união, a determinação e a obediência dos “soldados”. Tudo “blá-blá-blá”, tirando as palestras dos estrangeiros, que despertaram nosso interesse, pois estes realmente poderiam ter algo de útil a acrescentar.
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Cena 3: A Verdade entre as Verdades
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>>>> A noite foi longa e cansativa, embora tenhamos gostado de conhecer nossos colegas estrangeiros do Conselho. Chegamos ao hotel às quatro da manhã de 29 de abril, um sábado. Dormi até as dez, e só acordei tão cedo porque Kami bateu na minha porta. Ele parecia feliz, e parabenizou-me por eu estar entre a equipe de instrutores escolhida. Convidei-o a entrar e a sentar-se, e fui sem cerimônias escovar os dentes e tomar um rápido banho. Porém, este nunca é tão rápido, posto que não sei o que são banhos rápidos; sempre demoro-me um pouco, e canto, talvez desafinando; desta vez, a canção foi Das Deutschlandlied, o Hino Nacional da Alemanha. Por quê?! Tá no meu sangue. Da sala podia-se ouvir:
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“Einigkeit und Recht und Freiheit
für das deutsche Vaterland,
danach laßt uns alle streben
brüderlich mit Herz und Hand.
Enigkeit und Recht und Freiheit
sind des Glückes Unterpfand
blüh’im Glanze dieses Glückes,
Blühe, deutsches Vaterland!”
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>>>> Quando retornei, Kami sorria irônico, e folheava uma das revistas Superinteressante que havia numa cômoda ao lado do sofá. Ele comentou:
>>>> ― Canta bem! Pra quem não entende o que tá dizendo...
>>>> ― ... Te catá! ― Respondi, também rindo.
>>>> Quando largou a revista, fixou o olhar para a mesinha de centro, e perguntou interessado:
>>>> ― O quê raios é aquilo ali?!
>>>> ― Um Tarô!
>>>> ― O quê isso faz ali?
>>>> ― É meu. Deixa pra lá, outra hora eu te explico... Quando começaremos com a turma nova?
>>>> ― Em dois dias. Tá preparado?
>>>> Dei de ombros, como quem diz “a qualquer hora”.
>>>> Naquele dia, fizemos algumas compras, para a nova missão. Compramos equipamentos de selva, como cintos melhores, mais cantis, mais facas de caça e coisas assim. Novas pederneiras para fazer fogo, canecas de aço para cozinhar alimentos no mato, bússolas e acessórios.
>>>> À noite, Kami, que era meu vizinho de quarto, trouxe uns pacotes de massa instantânea, tipo Nissin Lamén, e com esse humilde repasto, jantamos sentados no sofá, conversando sobre a missão. Ele, relutante, começou a externar o que pensava realmente daquilo tudo.
>>>> ― Sabe, Gab... Eu sei que não devia falar essas coisas...
>>>> ― Pode falar. Somos amigos. Não... Somos irmãos!
>>>> ― Pois bem... Acho que nada é realmente como se apresenta.
>>>> ― Tá falando dos “grandões”, dos “cartolas” do Conselho...
>>>> ― É... É deles que falo. Acho que tem coisa escondida por trás.
>>>> ― Eu tenho meu plano: aconteça o que acontecer, seja dada a ordem que for, eu vou destruir todas as criaturas que encontrar... Nem que para isso tenha que desobedecer as ordens “deles”.
>>>> ― É sobre isso que eu queria falar contigo. Eu confio em ti, trabalhamos juntos desde antes disso tudo, e já passamos por várias...
>>>> ― Conta comigo.
>>>> ― Pois então, quero te perguntar: podemos confiar em mais alguém?
>>>> ― Miguel. Sem dúvida. Ele pretende mais do que o que lhe foi confiado. Tu sabe disso...
>>>> ― Sim, ele foi convocado apenas porque é criptozoólogo, e para que tivéssemos um especialista entre os agentes. Mas podem requisitar ele para trabalhar com qualquer grupo, por ser um dos três únicos criptozoólogos da Missão. Será que vai continuar com a gente?
>>>> ― Eu te perguntaria a mesma coisa. Ele, mais do que nós, quer algo mais do que justo: que a posteridade tenha acesso às informações; que todos saibam o que aconteceu com a humanidade neste século. Somos todos ufólogos amadores, tanto eu quanto ele, e tu também, que eu sei... Ele se arrisca levando aparelhagem de gravação de imagens contra as ordens do Conselho... Mas é muito eficiente. Temos algumas imagens.
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Cena 4: A Verdade entre as Verdades
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>>>> Na manhã seguinte, perto das dez, nos encontramos os três no restaurante em frente ao hotel. Miguel parecia muito contente porque enfim tinha amigos nesse meio tão “fechado”, como ele mesmo dizia serem os grupos militares e policiais em geral. Sentados à mesa, comíamos tranqüilamente, enquanto relembrávamos fatos da nossa última missão. Miguel, após um tempo, reparou:
>>>> ― Vocês também são vegetarianos!
>>>> ― E o que tem isso? ― Perguntou Kami.
>>>> ― Tem que é algo mais em comum que temos...
>>>> ― É mesmo! ― Respondi. ― Além de ser saudável, abster-se da carne torna o indivíduo mais equilibrado, mais centrado, mais leve...
>>>> ― Me respondam uma coisa... ― Indagou Miguel, curioso ― Enquanto o Diego cuidava exageradamente das armas, da pistola e do fuzil, notei que vocês se fiavam muito mais naquelas espadas japonesas...
>>>> Olhei para Kami, e sorri, como quem pergunta “E aí, quem vai dar essa aula para nosso novo aluno e discípulo?” Kami disse generoso:
>>>> ― Vá em frente!
>>>> Suspirei, pensando na melhor maneira de explicar. Não é fácil tirar décadas de preconceitos e crenças erradas de um ser humano, criado para ser produto de uma sociedade consumista e bitolada.
>>>> ― Me diz uma coisa... ― Comecei ― Tu conhece o poder de um fuzil alemão HK-33?
>>>> ― Claro! Eu servi na FAB. Sei que é muito preciso, mesmo tendo um calibre menor que o do AK-47, que é 7,65mm. O HK tem calibre 5,56mm, mas mesmo assim, fura um bloco de motor. Dá para se virar...
>>>> ― Por quanto tempo? ― Indaguei.
>>>> ― Com os carregadores para quarenta cartuchos, levando uns dez, dá para abater alguns monstros. ― Calculou Miguel, sem certeza.
>>>> ― E quando acabarem os cartuchos dos carregadores de quarenta? E quando acabarem os quinze cartuchos nos carregadores das pistolas Taurus 9mm? E quando acabar a munição da tua M1A1?
>>>> ― Vamos embora? ― Brincou Miguel.
>>>> ― Bem, amigo... Armas de fogo são úteis... Mas, mesmo com toda a munição disponível, elas podem falhar num momento crítico. Diego tem uma faca de caça enorme. Mas sabe usá-la?! Ele depende tanto das armas de fogo, que no dia em que precisar se defender com uma arma branca, o fará de forma desesperada. Kami e eu somos responsáveis com as nossas armas em geral: sempre as mantemos limpas e ajustadas. Porém, quando a última esperança engasgar com um cartucho que prende a culatra perto do ejetor, impedindo o disparo; quando estivermos combatendo no meio da noite, sem munição, e sem recursos; quando o alvo, mesmo com o corpo cravejado de projéteis, continuar se aproximando... Nós teremos a melhor arma já criada à nossa disposição.
>>>> Miguel sorriu e quis selar a amizade:
>>>> ― E onde eu compro uma?
>>>> ― Nem se dê ao trabalho... ― Riu Kami. ― Se tu entrar numa dessas lojas de ornamentos orientais, não pense que te venderão uma cataná.
>>>> ― Essas quebram com um espirro... ― Ri eu.
>>>> ― Uma cataná para combate, ― Completou Kami ―, própria para um samurai, só pode ser feita por um mestre armeiro japonês licenciado. Somente eles têm a “receita”, o modo correto de confeccionar uma arma que não quebrará no auge de uma luta. Esse segredo multi-milenar é preservado de estrangeiros. Essas que têm por aí são brinquedos, de aço moldado, que não servem sequer para substituir o facão.
>>>> ― Contudo, ― Continuei ―, fora do Japão, existe no Brasil, e apenas no Brasil, um mestre armeiro japonês capaz de fabricar uma arma samurai autêntica. Em nenhum outro País, fora o Japão, naturalmente, existe outro. Leva cerca de dois meses para ficar pronta. E custava entre dois e três mil reais, há três anos.
>>>> Miguel não ficou muito surpreso. Mas fez uma careta mais por brincadeira. Por fim, disse determinado:
>>>> ― Onde o encontro?
>>>> Kami, sério, mas satisfeito, recomenda:
>>>> ― Lembre-se: adquirir é a parte fácil. A segunda parte é a mais importante. E a mais vital. Saber usá-la.
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Cena 5: Reunião de Família
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>>>> Na tarde deste dia, perto das dezessete e trinta, eu tomava meu banho rápido, que não é tão rápido, cantando outra canção que gosto muito: Shtché ne vmerla Ukraine, o Hino Nacional da Ucrânia. Por quê? Mais além, noutra oportunidade, eu explico. Sob o chuveiro eu cantava:
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Shtché ne vmerla Ukraine i slava, i vôlia,
Shtché nam brattia môlodiyi, usmihnétchya dôlia.
Zgenutch nashi vorizhénhke, iak rossá na sontsi,
Zapanuyem i me, brattia, u svoyiy storontsi.
Dushu, tilo me polozhem za nashu svobódu
I pokazhem, shtchó me, brattia, kozatskoho rodu.
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>>>> Ao sair do banho, com a toalha enrolada na cintura, fui até a sala pegar minha roupa. E tive uma surpresa desconfortável: Kami, Miguel e Diego estavam estarrados no sofá, me esperando, com aquelas caras de deboche. Mas, antes que alguém fizesse comentários sobre minha afinação, eu desviei a conversa:
>>>> ― O que fazem aqui? Deviam estar concentrados...
>>>> ― Que raio de língua era essa? ― Quis saber Diego.
>>>> ― Russo? ― Chutou Miguel.
>>>> ― Ucraniano. ― Finalizou Kami. ― Agora vamos ao que interessa: amanhã começaremos a ensinar uma turma de dez indivíduos, entre militares, policiais e sabe mais Deus o quê...
>>>> ― E eu também estarei presente. ― Riu feliz Miguel.
>>>> ― É, ele será monitor auxiliar, pela experiência como criptozoólogo.
>>>> ― Fico feliz que estaremos juntos novamente. ― Falei.
>>>> Diego pegara meu baralho de Tarô, que estava na mesinha central, e brincava. Tirei-o das mãos dele, pus-lo novamente na caixa, e o guardei na estante. Kami, que até agora levara na brincadeira, ficou sério, como que preocupado por eu ter lá minhas superstições... Ou algo assim. Acho que ele pensava algo do tipo: “ele parecia tão equilibrado, mas acredita nessas bobagens!”. Parece que li sua mente... A de todos ali.
>>>> Conversamos sobre a missão e sobre os planos para ensinar aos novatos a dura tarefa que realizávamos a custa de muito trabalho e dificuldades. Ao final, antes de irem, Diego brinca:
>>>> ― Tu devia cantar em alemão. É mais a tua cara...
>>>> Todos rimos, e Kami, olhando-me de lado, disse para Diego:
>>>> ― Tu não diria uma coisa dessas, se tivesse hospedado aqui do lado. Ah, tu não diria!
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(Sexta-feira, 7 de janeiro de 2011. 23:27.)
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(Registro: RGM-4597-20110529)