segunda-feira, 6 de junho de 2011

Dragões Mutantes - Capítulo 01

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Introdução
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>>>> A busca pela glória, o desejo da conquista, a sedução da fama, são todos estes elementos da natureza humana. A superação dos limites impostos é uma vitória, e principalmente, quando estes limites são moldados pelo medo. O enfrentamento do medo é fundamental para o equilíbrio da alma.
>>>> As histórias cá narradas são verdadeiras. E, das coisas que não vi ou vivi pessoalmente, cuidei de documentá-las fielmente através da pesquisa. Todas fazem parte da minha história pessoal, da história dos que me cercaram, e da história oculta do mundo.
>>>> A minha visão pessoal predomina, entremeada pelas impressões que tive das visões de meus companheiros, com total fidelidade ideológica. Aquilo que mais me aterrorizava, que mais me congelava a alma, foi também o que me mostrou a verdade, o que me mostrou o caminho, o que me ajudou a vencer.
>>>> Assim, com o espírito de enfrentamento dos temores mais profundos, alcançamos nossas metas, sejam elas encontrar o Santo Graal, criar algo único, domar a natureza, ou apenas vencer uma fobia. Estes espíritos, magníficos e livres, dominam o mundo. Outros apenas buscam algo que perderam, ou mesmo, que nunca encontraram.
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Capítulo 1: Crepúsculo da Missão
Cena 1: Despertar para o Pesadelo
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>>>> A brisa gelada passara como um fantasma. Um calafrio percorrera-me desde os tornozelos até o pescoço. Acordei num sobressalto frenético, num despertar imediato, de um torpor já superado. A adrenalina fez, em segundos, com que meu corpo se pusesse em alerta. Vi, ao erguer a cabeça, apoiando-me nos cotovelos, uma cena muito clara, pictórica, apesar da escuridão da noite. À luz da fogueira alaranjada, e do lado oposto ao meu, algo fazia ruídos assustadores. Mais perto de mim, à minha esquerda, vislumbrei Kami, em pé, numa prontidão anormal, apontando sua escopeta de repetição calibre 12 para a origem do ruído. Voltei novamente à atenção para o alvo, mas com a visão ofuscada pelo fogo, nada via além de um amontoado de sombras na clareira, à frente do capinzal. Tudo isso, o acordar de sobressalto, o perceber a cena, e a reação, tudo aconteceu em apenas poucos segundos. Num salto reflexo, postei-me de pé, já com a mão na empunhadura da cataná ainda embainhada, mas pronta para o combate. Por um instante, meu corpo congelou e minhas pernas tremeram. Então, “Pum”! Um estampido enorme e surdo percorreu a planície, fazendo tremer o chão sob meus pés, e agredindo meus ouvidos, de tal maneira que nem me dei conta de para onde “aquilo” fugiu.
>>>> ― Gabriel... ― Chamou-me o atirador, num sussurro.
>>>> ― Apenas uma sombra, Kami... ― Respondi, ainda impressionado, e tentando limpar os ouvidos com os dedos.
>>>> ― Diego deveria estar de sentinela... ― Reclamou Kami, olhando em volta, preocupado.
>>>> ― Cadê o Miguel? O saco de dormir dele também tá vazio... ― Ponderei.
>>>> Após checar as barracas e os arredores, Kami sentenciou:
>>>> ― Sumiram mesmo! Quando acordei, já não tavam... Senti algo estranho, levantei e vi aquilo ali, parado, olhando pra gente...
>>>> ― Será que eles foram atrás de algum...?
>>>> ― Sei lá!
>>>> ― Vamos procurar...
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Cena 2: Quando a Falha Crítica Aparece
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>>>> Estávamos nos preparando para a busca, quando duas figuras humanas chegaram correndo à clareira, vindas da direção que mais vigiávamos, segurando suas armas. Eles pararam, ofegantes, gesticulando muito, com os rostos aterrorizados, deixando claro que viram algo. O mais magro disse, muito excitado:
>>>> ― Vocês não sabem! Tinha algo além daquela caatinga...
>>>> ― Sim, Diego. “Esse ‘algo’ esteve aqui.” ― Ironizou Kami, muito sério e desgostoso.
>>>> ― E vocês foram correndo ver...! ― Disse eu, incrédulo.
>>>> ― É! E que tiro foi aquele?! Aconteceu alguma coisa por aqui?! ― Perguntou Diego, com uma cara de pau tremenda.
>>>> ― Ele esteve aqui? ― Balbuciou o outro, mais impressionado ainda.
>>>> ― É, Miguel! Esteve... ― Respondeu Kami, conformado.
>>>> Kami estava bem decepcionado, talvez mais do que eu; por ser nosso líder, esperaria responsabilidade e companheirismo. Mas havia ali naquele grupo certa falta de entrosamento. Afinal existem erros de percurso e existe a estupidez total. Seu rosto nipônico tomou uma postura mais grave, não tão compatível com seus apenas vinte e oito anos de idade. Ele continuou:
>>>> ― Onde raios vocês estavam?
>>>> ― Qual é, japa?! Vai ficar bravo? ― Indagou Diego, mas Kami ignorou-o, com um semblante de quem não acreditava em algo que dera assim tão errado.
>>>> ― Diego, acho que não devíamos ter... ― Sussurrou Miguel.
>>>> ― Cêis são burros ou loucos?! ― Gritou Kami, furioso. ― Cêis são idiotas, ou o quê?! Se aquilo quisesse, seriam dois a menos... E quanto a nós?! Se eu não acordasse a tempo...
>>>> ― É! Vocês foram duplamente estúpidos: embrenharam-se no mato sem um plano, pondo suas vidas em risco; e puseram as nossas vidas em risco, quando nos deixaram dormindo! O que vocês fizeram tem vários nomes: negligência! Irresponsabilidade! Imaturidade! ― Falei eu.
>>>> ― Daqui pra frente, ― continuou Kami ― ninguém, nunca mais, fará algo assim, sem pensar, e sem me consultar. Entenderam?
>>>> Os dois jovens, envergonhados e olhando para o chão, sinalizaram positivamente. Miguel, com os olhos fixos nas duas câmeras que carregava, uma filmadora e uma fotográfica, tentava disfarçar que estava sem jeito. Diego fechou o rosto, e continuou na sua arrogância usual, como quem quer ter sempre a razão. Mas ele sabia... Desta vez, realmente, ele havia falhado.
>>>> Ah, se Kami não tivesse acordado a tempo...
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Cena 3: Pálidos Tons de Verde e Orvalho
24 de Abril de 2000
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>>>> Amanhecera, e a claridade do dia alaranjeava o matagal, que de negro se mostraria novamente verde. Com as mochilas nas costas e as armas nas mãos, preparamos mais uma viagem. Kami, acocorado, apagava os últimos resquícios de brasa da fogueira que nos protegera, muito pensativo. Miguel reunira todo o equipamento de barracas e os sacos de dormir em quatro volumes, cada qual em forma de um rolo cilíndrico. Diego, com sua HK 33 pendurada no ombro e sua pistola Taurus 9mm enfiada na calça, ajeitava um dos volumes às costas de Miguel, que segurava na mão uma carabina M1A1. Eu mesmo ajeitara o meu volume por cima da minha mochila, o que ajudava a ocultar minha cataná, e apanhei minha HK. Então, ajudei Kami a colocar o seu rolo, também sobreposto à sua mochila, e à sua cataná.
>>>> Iniciamos a caminhada por uma trilha tomada de capim, que já havia há muito tempo sido aberta a trator para passarem, de tempos em tempos, as comitivas de peões dessas que levam o gado para lugares vizinhos. Isto fazia já muito tempo mesmo, pois o capim alto formado no canteiro central quase alcançava o tamanho do matagal às margens da trilha, e a grama já cobria completamente as marcas dos pneus, das rodas de carroça e das patas dos cavalos e dos ruminantes que por ali haviam passado. Uma ou outra poça de barro revelava-se negra dentre os muitos tons de verde que víamos. Um cheiro bom, forte, de mato e de ervas, pairava no ar; e o vento revelava-nos a presença de eucaliptos próximos. Estávamos em algum lugar inóspito entre Tainhas e Canela, e andávamos em direção a esta, rumo ao sudoeste. Kami andava na frente, introspectivo e calado. Eu o seguia de perto, enquanto Diego e Miguel vinham mais atrás. O sol fraco mal nos aquecia, enquanto caminhávamos sobre todo aquele orvalho fresco.
>>>> Miguel se adiantou, aproximou-se de mim, e perguntou:
>>>> ― Para onde vamos agora, Gab? ― E conferiu se Diego nos seguia.
>>>> ― Novo Hamburgo. Vamos voar para Santa Catarina.
>>>> Miguel era mais vivido que Diego e Kami. Tinha já uns trinta e cinco anos de idade, e era muito eficiente, apesar de um pouco inseguro. Ele carregava uma boa câmera filmadora sempre à mão, e outra fotográfica com lente objetiva pendurada no pescoço. Ele era (e ainda é) cinegrafista e biólogo.
>>>> ― Nesta noite senti tanto medo que quase desmaiei. Sequer mantive a câmera firme. Pena, mas mesmo que eu tivesse filmado, com aquela escuridão toda não apareceria nada na imagem...
>>>> ― As câmeras dele são mais inúteis do que as espadinhas de vocês... ― Intrometeu-se Diego, lá detrás, com sua costumeira empáfia.
>>>> Nem me dei ao trabalho de responder. Diego era imaturo demais. Tinha a idade de Kami, mas aparentava bem menos. Havia algo de irreverente nele, e por causa disso, temíamos que ele pudesse subestimar o nosso trabalho a ponto de pô-lo a perder.
>>>> ― Na FAB, não nos ensinam a lidar com isto: obedecer a civis. Ainda mais, assim! Pareço um civil, sem meu uniforme. Ao menos me deram armas funcionais. Nada como nossas HK 33 e nossas Taurus 9mm!
>>>> ― Paciência, tenente! ― riu Miguel ― Se te chamaram para isto, é porque confiam em ti! Além do que, tudo tem um lado bom... Eu, por exemplo, só estou aqui porque sou biólogo. Nunca me deixariam participar apenas por eu ser cinegrafista amador. Mas eu quero mesmo é a chance de conseguir boas imagens.
>>>> ― Aliás, Miguel ― Interrompeu Diego ―, se descobrem que tu trouxe equipamento de filmagem e fotografia, confiscam tudo e te prendem por um bom tempo... Como tu disse, te chamaram porque tu é pesquisador de espécies novas... Mas se soubessem que tu é um desses ufólogos de fim de semana, como esses federais aí, jamais te deixariam vir.
>>>> Diego era um esforçado tenente da FAB, especializado em infantaria e táticas especiais de combate na selva, e fora indicado pela chefia da missão. Mas estava sob as ordens de Kami, que era delegado da Polícia Federal, mas um civil. Para Diego, isso era demasiado degradante. Para Kami, era apenas um detalhe.
>>>> Eu era agente do COT, também da Polícia Federal, e tinha vinte e cinco anos. O ano era 2000. Apesar da responsabilidade, eu parecia muito mais jovem. Pelo fato de ter cabelos longos, tatuagens e piercings, eu parecia um surfista. Na verdade, era também pára-quedista, naturalista, e praticava Kung Fu e Parkour, além do Surf.
>>>> Após uns minutos, Kami parou por uns instantes, e conferiu o mapa. Miguel se achegou a ele com a pergunta:
>>>> ― Falta muito, delegado?
>>>> Kami respirou fundo, olhou em volta, e respondeu:
>>>> ― Meia hora, e estaremos no ponto de resgate.
>>>> Ainda ali, Kami retirou o colete com os dizeres: “Polícia Federal”; eu também retirei o meu, que dizia: “COT”.
>>>> ― Lembrem-se todos: eu não sou delegado, Gabriel não é policial federal; você, Diego, não é militar; Miguel, não fale nada... Seremos apenas três policiais comuns, e um jornalista, investigando o roubo de gado na região. Todos compreenderam?
>>>> Todos assentiram com a cabeça, e retomamos a caminhada.
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Cena 4: Teatro Abandonado
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>>>> Chegamos, enfim, a uma porteira, coberta de urze, formando uma parede viva, atrás da qual, uma aglomeração de grandes maricás fazia sombra sobre um negro Jeep Gran Cherokee com vidros escuros. Abrimos a porteira e andamos em direção ao carro. Um homem de chapéu, com uns cinqüenta anos, acompanhado de um mulato bem mais moço e desconfiado, também de chapéu, apareceu vindo do outro lado da Jeep. Ambos cumprimentaram-nos com a cabeça, e o mais velho disse:
>>>> ― Bom dia, como podemos ajudar os moços?
>>>> ― Bom dia, senhor! ― Falou Kami, à nossa frente. ― Somos investigadores, e estamos atrás de ladrões de gado... O senhor já sabia que viríamos?
>>>> ― Sabia sim! O delegado de polícia daqui ligou e pediu que eu lhes desse uma carona até Canela. Espero poder ajudar...
>>>> ― Ajudará muito, senhor! E nós lhe pagaremos a gasolina e o seu tempo.
>>>> ― Precisa não, seu moço! Eu faço questão de ajudar os senhores a manter as coisas certas!
>>>> Havia algo de desconfiado e perscrutador nos olhos daquele pequeno fazendeiro, como se ele fingisse engolir a história contada...
>>>> ― Nesse caso, muito obrigado! ― Kami foi muito simpático com o homem que, apesar de estar sendo enganado quanto à natureza da missão, tinha nosso profundo respeito.
>>>> Embarcamos na caminhonete, e partimos rumo à Canela. De lá, uma viatura nos levaria para Nova Hamburgo.
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Cena 5: Caçador ou Caça?
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>>>> Ainda no Jeep, a viagem parecia não ter fim. A paisagem passava monótona à volta, ora com matagais, ora com alguns poucos prédios. De início, o nosso motorista, o carismático criador de gado, não tentou puxar conversa. Eu percebi que ele desconfiava que algo não batia com o que lhe disseram. Kami ia no banco a seu lado, enquanto Diego, Miguel, e eu nos apertamos no banco detrás. Felizmente, sem as armas maiores, que ficaram no porta-malas. Após um tempo incômodo e desconfortável, mais pela situação do disfarce que pelo aperto, finalmente o homem resolveu puxar assunto:
>>>> ― Fico feliz em ver os senhores por aqui... Nesses últimos tempos, eu perdi muitas cabras e galinhas... E dois bois de corte também. ― Ao dizer isto, ele nos observava pelo retrovisor, como que perscrutando nossa estranha presença, e continuou: ― Espero que os senhores encontrem o canalha que...
>>>> Kami olhou para mim, e eu entendi. O motorista dissera “o canalha”, e não “os canalhas”... Ladrões de gado não agem sozinhos. Ele viu algo. Kami desconversa:
>>>> ― Estamos trabalhando, e progredimos muito, senhor...
>>>> ― Hermano... Hermano Schuquel! ― Disse ele, mais satisfeito.
>>>> ― Bem, senhor Hermano, outra equipe maior virá. Nós temos tudo planejado para os roubos cessarem de acontecer.
>>>> ― Agradeço.
>>>> Ao dizer isto, e novamente relutante, o senhor Schuquel voltou ao silêncio, mas eu sabia que ele se perguntava: “Que roubos?”.
>>>> Logo, Kami telefonou para outro delegado da PF, indicando a estrada onde estávamos e nosso destino. Quando chegamos aos limites de Canela, paramos em frente a uma van branca com vidros escuros e sem qualquer identificação, mas que já nos esperava. Descemos, pegamos os equipamentos no porta-malas, e nos despedimos do senhor Schuquel. Enquanto os outros três entravam na van, me demorei um pouco mais e, encarando o senhor Schuquel nos olhos, lhe perguntei de forma direta:
>>>> ― Senhor Hermano, seja sincero... O senhor viu “alguma coisa”... Não viu?! ― Ele engasgou, sem saber o que dizer. E eu concluí: ― Eu sei! Eu sei o que o senhor viu. Só não sei “qual deles”...
>>>> O homem ficou ali parado, sem saber se contava algo, e arriscava a ser “incomodado”... Ou se preferia manter-se misterioso. Quando cheguei à van, olhei para trás, e ele estava lá, parado, relutante. Ele apenas disse:
>>>> ― Dos grandes... Dos grandes!
>>>> Minhas pernas tremeram novamente.
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Cena 6: Crepúsculo da Missão
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>>>> A van nos levaria para o próximo destino. Apesar de a velocidade ser a mesma do Jeep do senhor Schuquel, pareceu-me que a viagem fora mais rápida. Os dois agentes que nos resgataram, de ares graves e sisudos, com óculos escuros e bonés, não usavam uniformes e sequer se apresentaram. Eles viajavam na frente, com o mais magro dirigindo. Durante a viagem toda, eles não disseram uma palavra, sequer entre si. Nós estávamos ansiosos pelo que estava por vir.
>>>> De súbito, finalmente, um deles disse uma única palavra:
>>>> ― Chegamos.
>>>> Descemos da van e percebi que estávamos dentro do pátio do Aeroclube de Novo Hamburgo. Apenas quatro pessoas nos esperavam: reconheci o presidente do aeroclube e um piloto, mas não os outros dois, tipos robustos com cara de militares ou coisa assim. Eles nos receberam:
>>>> ― Sejam bem vindos, agentes!
>>>> ― Obrigado, Doutor! ― Respondeu Kami, apertando a mão que lhe fora oferecida.
>>>> ― Vejo que o tenente Diego e o biólogo sobreviveram à primeira missão! ― Observou o outro tipo, debochado.
>>>> ― Sobreviveram sim, Coronel!
>>>> Kami nos apresentou:
>>>> ― Doutor Chandler, Coronel Mendes, eu sou o delegado Kami Mitsui, da Polícia Federal. Se não me engano, estamos indo para Laguna, para preparar a próxima missão. Estes são nossos agentes Gabriel, do COT, e meu colega da Polícia Federal; o segundo-tenente de infantaria Diego, da FAB, os senhores já conhecem; e este é Miguel, o biólogo indicado pelo conselho Condor.
>>>> Os misteriosos “chefões”, cumprimentando-nos cordialmente, com sorrisos em demasia, nada mais disseram. Vimos pequenas caixas e equipamentos serem carregados para perto do avião monomotor, um Cessna, prefixo PT-BXC, que já conhecíamos. O piloto, então, fez sinal com a cabeça, indicando que estaria tudo pronto. Os sujeitos, então, o seguiram até a aeronave. Eu dirigi-me para o Hangar, e vi meu pára-quedas pronto, à minha espera. Com a ajuda de Kami, equipei-me, e ajustei todos os tirantes firme e confortavelmente. Ajudei Kami a equipar-se também. Ele, em tom professoral, perguntou aos outros:
>>>> ― Todos vocês já saltaram, não?!
>>>> ― Sim! ― Respondeu de pronto Diego; ― Tenho quarenta saltos.
>>>> ― Sim, eu freqüento áreas em vários lugares. ― Completa Miguel; ― Acho que tenho já uns dois mil saltos...
>>>> Miguel sempre fora esportista, e foi instrutor de Skysurf; Kami tinha mais de oitenta saltos, porque começara recentemente. Eu, tenho pouco mais de quatrocentos... Dentre nós, Diego é o caçula.
>>>> Kami ainda conversou algo mais com os “chefes”, pois eu os vi a um canto do hangar. Quando ele chegou onde estávamos, disse-nos isto:
>>>> ― Guerreiros, o nosso transporte já está chegando!
>>>> ― Pensei que iríamos naquele Cessna... ― Surpreendeu-se Diego.
>>>> ― Teríamos que pousar para abastecer no caminho. ― Disse Kami.
>>>> ― E isso seria o fim... Do nosso objetivo! ― Brinquei eu.
>>>> ― O Cessna levará o Doutor e o Coronel até a Base Aérea de Canoas. Tem um Hércules C-130 da FAB chegando. Com sorte, consegue pousar aqui. Com mais sorte, decolamos! ― Brincou Kami.
>>>> ― De que objetivos tu tava falando? ― Perguntou-me Miguel.
>>>> ― Tanto Kami quanto eu, mantemos uma “peculiaridade” que poucos no mundo conseguiram manter. É apenas uma vaidade pessoal! Mas nós jamais, até hoje, pousamos dentro de um avião. Fazer escala seria sacrificar isto. Por isso, sempre planejamos muito bem nossos movimentos... Para manter essa “peculiaridade”.
>>>> Diego, sério, intervém:
>>>> ― É por uma “vaidade” que manipulam a gente? É por isso que não pousamos em um aeroporto como seria o natural?
>>>> ― Não! ― Justificou Kami. ― Fazemos isto para poupar tempo, e também porque é mais seguro. Tu sabe muito bem que somos monitorados por “aquela gente”...
>>>> Minutos depois, o C-130 Hércules pousa, fazendo enorme estardalhaço. Todos equipados, ajustados e prontos, seguimos em direção ao avião. Altímetros nos punhos, ajustados em “zero”, e demais equipamentos já a bordo, embarcamos também. Kami ainda considerou:
>>>> ― Não se esqueçam de “abrir” entre três e quatro mil pés... A diferença de altitude entre aqui e lá é mínima, mas não vamos arriscar. Outra coisa: o avião não veio especialmente para nos levar... Ele está indo para Brasília, e vai apenas passar por Laguna, a pedido do Coronel. Há dois tripulantes militares, portanto, não devemos falar “demais”, entenderam? E fiquem todos atentos ao meu comando.
>>>> Todos sinalizamos que entendemos, e as hélices irromperam num som ensurdecedor. Começamos a taxiar, ainda com a porta aberta, até a pista. Eu, que sempre fora o “zero um” (o que “sai” primeiro), fechei a porta, como de costume. Decolamos e esperamos, pacientemente sentados, a chegada ao litoral catarinense. Lá, eu veria mais que o céu de Laguna. Veria minha esposa, Rosângela.
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Cena 7: Silêncio na Roda
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>>>> Já podíamos ouvir nossas vozes novamente. Com a porta fechada, o barulho dos motores era abafado pela fuselagem. O piloto, que manobrava contra um forte vento de nariz, levantou-nos sem dificuldades. Mas este favorável vento, por açoitar-nos em rajadas esporádicas, desestabilizava o vôo. Ainda bem que estávamos prontos para sair onde quer que fosse. Sairíamos dali apenas sobre certa parte da ilha de Laguna. O avião era muito pesado, mas estava leve pela falta de “carga”. Éramos nós cinco, mais dois sargentos “caroneiros”, mais os equipamentos que levávamos. A viagem duraria umas quatro horas.
>>>> Durante a viagem, mal nos falávamos. Os “caronas” puxaram conversa com Miguel, que se entrosou bem com eles. Diego, que era curioso e metido, também se achegou a eles, deixando escapar que também era militar. A conversa estava animada, mas Kami vigiava Diego, com medo que ele abrisse a boca e falasse sobre algo que não deveria. Mais ou menos no meio do caminho, quando os caronas cochilaram, Kami nos reuniu na parte mais afastada deles, perto da cauda, e orientou-nos sobre o modus operandi:
>>>> ― Gabriel, vamos mudar a ordem de saída: o “zero um” será Diego, que tem menos saltos. O seguinte será Miguel, que é experiente, mas é civil, e está sob minha responsabilidade. Tu deveria sair depois de mim, mas prefiro que vá antes, e abra o velame a “dois mil”, abaixo da gente, para sinalizar o local de pouso mais favorável...
>>>> ― Certo! Entendido! Vamos checar o equipamento e a bagagem.
>>>> Na hora prevista, o piloto avisou pelo rádio que voávamos sobre a ilha. Despedimos-nos dos dois tripulantes, e preparamos tudo, verificando novamente os equipamentos. O material das pequenas caixas foi distribuído. Eram bolsinhas com “kits” de primeiros socorros e de sobrevivência na selva. As pequenas bolsas que continham os “kits” puderam facilmente ser presas ao corpo, engatadas aos tirantes de pernas dos pára-quedas. Kami abriu a porta, e visualizou o local. Após uns dois minutos, voando com a porta aberta, o piloto confirmou a localização. No momento da saída, Kami sinalizou que nos preparássemos. O ronco dos motores não favorecia o diálogo, mas ele ainda orientou-nos aos gritos:
>>>> ― Estamos no “PS"! Olhem na direção do profundor que verão a clareira. Nos reunimos lá!
>>>> Assenti com a cabeça, e todos pusemos os óculos. Diego chegou junto à porta, olhou para Kami, e a um gesto deste, saiu. Em seguida, Miguel, junto à porta, esperou o comando de Kami, e saiu. Depois eu, bem à porta, respirei fundo, olhei Kami, e a um gesto de “OK” dele, mergulhei no céu de Laguna.
>>>> Estabilizei após dois “loopings” frontais. Então, consegui ver Miguel um pouco abaixo de mim. Logo em seguida, Kami chegou bem perto, no mesmo nível que eu. Diego, mais abaixo, navegava para longe. A quatro mil pés, Diego acionou o velame, e ele ficou para trás; ou melhor, “para cima”. Miguel acionou em seguida, também ficando “para cima”. Já a uns três mil pés, Kami despediu-se, e acionou o disparador, logo sumindo da minha visão. Esperei... E verifiquei o altímetro, que já marcava dois mil e quinhentos, e abri também. Pude ver os outros três velames navegando suavemente muito acima de mim. O “alvo” era uma clareira que parecia ser um campo de futebol mal cuidado, com mais terra do que grama. Ali deveríamos pousar e recolher o material. Então, puxei o batoque esquerdo todo para baixo, girando a aeronave, e rumei para o descampado.
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Cena 8: Ninho dos Pássaros
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>>>> A terra se aproximava rápida. Parecia que iria me atropelar. Puxei os dois batoques para baixo, freando a levíssima aeronave, e toquei os pés no gramado, correndo o mais que pude. Ao parar, o colorido velame passou à minha frente, amontoando-se no chão. Com uma mão, uni todas as vinte cordas, e com a outra eu as enrolei e as joguei sobre o tecido. Recolhi o “bolo todo”, e aguardei os outros pousarem. Todos tiveram sucesso, exceto talvez Diego, que conseguiu pousar sobre uma poça de barro, o que contribuiu para deixar seu humor ainda mais “agradável”. Comecei a observar ao redor, e após alguns minutos (e uma ligação de Kami), uma pickup S-10 chegou para nos resgatar. Kami foi na cabina com o motorista, que era, como soubemos mais tarde, da Polícia Ambiental. Eu e os outros viajamos no compartimento de carga.
>>>> Ao chegarmos à uma pequena fazenda, o nosso motorista esperou-nos no carro, enquanto levávamos os equipamentos, os que não seriam usados por enquanto, para um grande e velho galpão. Kami orientou:
>>>> ― Vamos deixar os pára-quedas aqui, que uma equipe os pegará amanhã. Não precisam dobrar, isto será feito também amanhã.
>>>> Voltamos à pickup, e partimos rumo ao centro da cidade.
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Cena 9: Breve Reencontro
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>>>> Ali nos separamos. Kami iria para um local combinado, encontrar-se com alguém da chefia, também um subalterno, mas a alguns degraus acima dele. Diego e Miguel ficariam livres para aproveitar a folga de dois dias. Eu não os convidei para irem à minha casa por duas razões: a primeira, e mais óbvia, era o fato de que nossas famílias não deveriam saber nada sobre a missão, e por isso mesmo, não deveriam ter contato com os demais integrantes; a segunda, mais egoísta, era o outro fato, de que eu não via Rosângela havia mais de vinte dias. E quando a vi, parecia que não nos víamos há anos.
>>>> Afastada da cidade, numa vila semi-deserta, e incrustada numa selva de Mata Atlântica, há poucos metros do mar, a casinha aconchegante surgia limpa e jeitosinha. Na rua não havia mais que oito iguais, e a maioria estava desocupada. Rosângela, a quem chamo carinhosamente de Gina, estava pendurando e estendendo lençóis no varal. E vestia, como de costume, apenas o biquíni, marca de quem sempre vivera em uma colônia naturista, e que agora era obrigada a vestir algo, mesmo morando ao lado do mar. Aliás, para seu corpo cheio de curvas, com atributos fartos acima e abaixo da cintura, a loira sempre exagerou na sumariedade das roupas. E aquele biquíni não era a exceção. Sequer se notava que ela vestia algo, tão pequenas eram as peças. De longe eu a reconheci, ocupada e distraída.
>>>> Eu iria surpreendê-la, e pelas costas, abraçá-la; mas ela me percebeu antes, quando eu me aproximava do portão. Gina sorriu daquela maneira que não consigo descrever, e brincou:
>>>> ― Ah! Até que enfim! Agora eu tenho um motivo pra “descansar”...
>>>> Nos abraçamos, nos beijamos, e nos descontrolamos. Quando percebi, ela tinha tirado minha camisa, e já abria minha calça. Nos deslocamos com muita dificuldade até a casa. Demos a volta pelo lado esquerdo, entre beijos e mordidas, e quando chegamos à porta, ela estava nua em pêlo, e eu só de cueca...
>>>> Era de tarde. Fizemos amor durante a noite toda, e durante toda a manhã seguinte. Daí, bateu aquela tristeza: breve eu teria que voltar, e ela ficaria sozinha de novo.
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Cena 10: Antítese Paradoxal
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>>>> Quatro noites apenas. Foi o quanto pude ficar com minha Gina. Nos despedimos longamente, e, no início da tarde daquela sexta-feira, parti novamente rumo ao desconhecido, sem saber se retornaria. “A partida é dura quando o coração é mole”, dizia-me Gina, sempre que nos separávamos. Desta vez, com roupas limpas, e botas secas e engraxadas, parecia que a mochila estava mais leve. Caminhei uns vinte minutos até o centro, onde encontrei Miguel lanchando numa bodega conhecida. Já com o ânimo renovado, ele falou como se estivéssemos indo a uma festa:
>>>> ― Kami mandou que o esperássemos aqui. Ele foi buscar o transporte, que nos levará ao próximo destino.
>>>> ― Parati?
>>>> ― É! A reunião será lá! Mas não vamos de barco: vamos de carro até Floripa, onde pegaremos um Bandeirante, que vai pra Salvador, mas que fará escala no Galeão. Saltaremos no alto da Serra.
>>>> ― Ótimo!
>>>> Nisso, vinha chegando Diego, que nos avisou:
>>>> ― O transporte está nos esperando.
>>>> Miguel pagou a conta, pegou sua mochila, e rumamos para a carona, uma Blazer preta, sem qualquer identificação. Kami a estava guiando.
>>>> A calçada movimentada, cheia de pessoas andando com sacolas e bebidas, lembrava aqueles momentos em que saímos do trabalho, quando vamos fazer umas comprinhas antes de ir para casa... Mas nós, ao contrário, estávamos partindo para uma missão, sem previsão de volta. Entramos no carro, e partimos.
>>>> Em Florianópolis, pegamos o Bandeirante, já com os equipamentos de pára-quedas prontos para uso. Armas, só levávamos as curtas, pistolas semi-automáticas, calibre 9mm. Em Parati, saltamos sobre a Serra, e nos reunimos numa propriedade particular, pertencente a um militar da reserva, que cedera o local à Polícia Federal, sem contudo saber da natureza da reunião. Inclusive, todo o local foi minuciosamente revistado, para que não houvesse câmeras nem gravadores. Naquela noite, aconteceu a reunião semestral do Conselho Condor, responsável pelas operações na América do Sul.
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(Quarta-feira, 29 de dezembro de 2010. 21:58.)
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(Registro: RGM-4597-20110529)

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